Cidadania e Democracia (1)

Artigo 29, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Out 2008

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Capítulo Nove: abordemos agora a relação entre Cidadania e Democracia.

Será possível o exercício da cidadania sem democracia?  É possível o exercício da democracia sem cidadania?

Lembremos ainda uma vez Vygotsky (v. Sustentabilidade e Cidadania, Ago 2008): “Uma palavra que não representa uma idéia é uma coisa morta, da mesma forma que uma idéia não incorporada em palavras não passa de uma sombra.”

A freqüência da palavra “democracia” no cotidiano concorre com a diversidade de interpretações a ela associadas (quando há alguma), muitas vezes até mesmo em sentidos antagônicos (como ocorre, p.e., com as palavras “amor” ou “Deus”).

Já não me espanta vê-la mais enunciada justamente pelos que menos a compreendem e exercitam, usada nesses casos como um álibi.  É comum vê-la associada ao pretenso “direito” de alguém fazer o que bem entender, não importando as conseqüências quer para si, quer para os outros (o que bem pode resumir o que entendo por “irresponsabilidade”).

Como veremos, democracia tem a ver com liberdade, que traz consigo a inseparável noção de responsabilidade, fruto da alteridade (v. Espaço e Ambiente, Jul 2006).

O termo “démokratía” teve origem na Grécia antiga (em Grego, “dêmos” significa “povo” e “kratía” é “força, poder”).  Logo, numa tradução literal, significa, em princípio, “poder do povo” ou ainda “poder exercido pelo povo”.

Nossos dicionários lhe atribuem pelo menos oito significados, registrando assim a diversidade de interpretações.  Agrupando-as para uma abordagem inicial simplificada, no primeiro grupo temos:

- “país em que prevalece um governo democrático”;

- “força política comprometida com os ideais democráticos”.

Estas interpretações apenas designam uma situação ou qualidade, quer para um país, quer para um grupo político.  São de pouca valia neste momento de nossa reflexão porque auto-referentes (usam a palavra “democrático” para definir “democracia”; assim, ficamos na mesma).

Já no segundo grupo temos:

- “governo do povo; governo em que o povo exerce a soberania”;

- “sistema político comprometido com a igualdade ou com a distribuição equitativa de poder entre todos os cidadãos”;

- “pensamento que preconiza a soberania popular”.

Neste grupo notamos uma entidade composta por uma população de seres humanos, genericamente nomeada pelas palavras “povo” ou “cidadãos”; e há também as referências ao poder, representado pelas palavras “governo”, “soberania”, “sistema político”.  É a literal tradução de “poder do povo”, para que a liberdade da maioria não se veja submetida por uma minoria.

Em um terceiro grupo temos:

- “governo no qual o povo toma as decisões importantes a respeito das políticas públicas, não de forma ocasional ou circunstancial, mas segundo princípios permanentes de legalidade”;

- “governo que acata a vontade da maioria da população, embora respeitando os direitos e a livre expressão das minorias”;

- “sistema político cujas ações atendem aos interesses populares”.

Neste grupo de interpretações podemos notar que o poder (“governo”, “sistema político”, "decisões”), ainda que expressão da “vontade” da maioria da população, deve observar certos limites para que haja “igualdade ou distribuição equitativa de poder entre todos os cidadãos” (liberdade), pois há referências claras a respeito de “princípios permanentes de legalidade”, “políticas públicas”, “respeito aos direitos e livre expressão das minorias”, manifestações estas do que podemos entender por responsabilidade de cada um e de todos, filha da alteridade (o Outro e seus direitos).

A parte obscura neste terceiro grupo reside naquele “interesses populares”.  Como bem sabemos (e a História registra a ferro e fogo, além de muito sangue) Adolf Hitler foi eleito em 1933 por escolha da maioria do eleitorado alemão.  Barrabás, não Jesus de Nazaré, foi solto por escolha popular.  Você conhece algum exemplo atual?

Mergulhando no tempo, busquemos as origens conhecidas da democracia em Atenas, na Grécia, cerca de 400 anos antes de Cristo (século V aC).  A democracia ateniense dava-se numa cidade-estado com cerca de 500 mil habitantes: destes, 300 mil eram escravos; dos 200 mil restantes, desconsiderando-se as mulheres, as crianças e os estrangeiros, restavam cerca de 40 mil cidadãos, os que tinham diretos políticos.

Ao que consta, o filósofo Platão (v. Ecologia e Educação, Mar/Abr 2007) a detestava.  Porém, não porque não representasse uma democracia plena (e aí vai-lhe o primeiro adjetivo), mas porque, sob sua ótica, gente demais exercia o poder e o povo podia ser facilmente manipulado por demagogos...

Hannah Arendt (1906-1975, alemã), filósofa e teórica política, que faria 102 anos neste Outubro, dedicou sua vida ao estudo da condição humana e à luta contra o totalitarismo.  Voltaremos a ela.

No próximo artigo avançaremos nesta reflexão.