Democracia e Utopia (3)

Artigo 33, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Fev 2009

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Capítulo Dez: mergulhemos na reflexão sobre a relação entre Democracia e Utopia.

A palavra “utopia” não existiu até o inglês Thomas Morus (1478-1535) tê-la criado, ao publicar em 1516 a obra a que deu o título de “A Utopia”.

Embora escrita em Latim, por erudição e cautela de Morus (na verdade Thomas More para os ingleses), “A Utopia” fez rápido e crescente sucesso à época e muito mais depois.

Nela, na forma de um diálogo travado com um marinheiro muito viajado junto aos descobridores e exploradores de novas terras de então, Thomas Morus descreve uma nova e paradisíaca ilha onde haveria uma sociedade perfeita, livre de qualquer constrangimento, miséria ou doença, gozando de abundância num espaço desprovido de mal.

Sendo “de família não-célebre, mas honesta” e um homem de estado, das leis, advogado, professor, parlamentar, diplomata, embaixador do rei e escritor, foi também um pai carinhoso e libertário, um amigo bem-humorado que transitava pelos perigosos caminhos das ligações com o poder e é reconhecido como um dos maiores humanistas de seu século e também da história humana.

Terminou como mártir, condenado e executado pelo rei Henrique VIII, a quem tão lealmente servira, tendo-se recusado a trair seus ideais humanitários e suas convicções cristãs.

Morus, por sua paixão pela verdade, sua retidão e exemplo de vida, foi beatificado em 1886 e finalmente canonizado em 1935.  Em 2000, João Paulo II o proclamou “patrono dos governantes e dos políticos”.

Cabe-nos, sem assombro, indagar quem, dentre os políticos e governantes existentes aos milhares, alguma vez na vida sequer ouviu falar de Thomas Morus, que dirá conhecer-lhe a obra e importância.

Ao criar a palavra “utopia”, Morus tomou os radicais gregos “tópos” (que quer dizer “lugar”) e “ou” (um advérbio de negação), atribuindo assim à nova palavra o literal significado de um “não-lugar” ou “em lugar algum”, nenhures.  Mas é possível ver-lhe ainda um outro sentido: “eu” (em Grego, “verdadeiro”,” bom”) e “tópos” (“lugar”) a representar “o lugar verdadeiro”, o “bom retiro”.

Embora “utopia” fosse um termo novo, seu significado profundo não o era, pois há milênios filósofos, poetas, escritores e homens públicos descreviam lugares e épocas idealizados como harmoniosos, felizes e abundantes em bem-estar, numa conhecida busca de retorno aos “bons tempos”, de retorno ao paraíso perdido.  E continuaríamos a fazê-lo intensamente pelos séculos seguintes.

Entretanto, infelizmente, assim como somos seres muito criativos e, espantosamente, todo e qualquer ser humano jure buscar “o bem de todos”, também não há bem ou virtude que a mão humana não degenere.  Desta forma, o significado original de “utopia” como “o bom lugar” foi sendo malbaratado e

vilipendiado de maneira tal a originar, ao longo de tantos maus tratos, significados muito distintos e até mesmo opostos ao que Thomas Morus lhe emprestou.

Assim é que hoje as mais freqüentes referências do tal senso comum a “utopia” não procuram associá-la a “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade”, mas sim buscam atribuir-lhe a pecha de “projeto de natureza irrealizável, idéia generosa, porém, impraticável, uma quimera, uma fantasia” ou “coisa de poeta ou filósofo”.

Entretanto, “A Utopia” é muito mais: não apenas acena com um outro mundo desejado e possível; ela constitui-se numa profunda e crítica análise da forma como as sociedades européias se organizavam e estavam prestes a se reorganizar, submetidas a partir de então a uma lógica mercantilista (onde tudo é mercadoria) que iniciava a conquista de corações, mentes e o resto do mundo humano, o começo da substituição de um tipo de escravatura por outro, mais sofisticado e perverso.  Após 500 anos e em plena vigência do capitalismo em sua fase de barbárie, qualquer semelhança não é mera coincidência.

Em sua concepção mais atual, “utopia” é a “imagem de um desejo”, é “a promessa de felicidade” e, como diz o historiador inglês A. L. Morton, “a história das utopias reflete as condições de vida e as aspirações dos indivíduos e das classes sociais em diferentes épocas da história”.

Para sociólogos como Karl Mannheim (húngaro, 1893-1947) ou filósofos como Ernst Bloch (alemão, 1885-1977), é “projeto alternativo de organização social capaz de indicar potencialidades realizáveis e concretas em uma determinada ordem política constituída, contribuindo desta maneira para sua transformação”.

Qual a nossa utopia?

Como nos alertava nosso grande educador Paulo Freire, "não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, se temos adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor.  Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade alcança mudar."

Nunca será demais lembrar ainda uma vez Winston Churchill, quando em 1936 procurava em vão alertar seu país quanto aos perigos do nazismo emergente:

A era da procrastinação, das meias-medidas, das ações de curto prazo, dos adiamentos, está terminando.  Em seu lugar estamos entrando no período das conseqüências.”

E ainda Fernando Pessoa:

Pedras no caminho?  Guardo todas, um dia vou construir um castelo...”  “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

Concluiremos na próxima.