Democracia e Utopia (4)

Artigo 34, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Mar 2009

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Capítulo Dez: então para concluir nossa reflexão sobre a relação entre Democracia e Utopia.

Nossa jornada até este ponto buscou lançar algumas luzes sobre aspectos da vida amiúde obscurecidos ora pelo desconhecimento, ora pela falta de coragem, ora pelo fato apontado no artigo Sustentabilidade e Cidadania (Set 2008):

o maior ardil estabelecido [pela lógica mercantilista do capital e dos acumuladores] consiste em tomar todas as nossas energias, todo nosso tempo, numa eterna e angustiante luta pela sobrevivência, numa moderníssima escravatura”.

Em seu excelente documentário “Uma Verdade Inconveniente”, o quase presidente americano Albert Gore Jr nos lembra uma sagaz observação de Upton Sinclair (1878-1968, estadunidense), escritor, jornalista e ativista político:

É difícil conseguir que um homem compreenda uma coisa quando o seu salário depende de ele não compreendê-la.”

O escritor Octavio Paz (1914-1998, mexicano), diplomata e Nobel de Literatura, nos diz:

"As massas humanas mais perigosas são aquelas em cujas veias foi injetado o veneno do medo... do medo à mudança."

O que há para transformar, tendo em vista o bem comum?  E se há, então como e quando?

Há pouco mais de 20 anos atrás, sem o perceber e desprezando os alertas de incêndio de inúmeros pensadores e pesquisadores, a humanidade cruzou um perigosíssimo limiar: passamos a gastar mais do que ganhamos, ou seja, em nossa relação com a Terra passamos a consumir mais recursos do que os processos naturais do planeta conseguem repor; e a cada ano agravamos ainda mais este desgaste (o aumento das taxas dos gases do efeito estufa é apenas um dos aspectos).  Qualquer dona de casa responsável poderá nos ensinar qual o resultado desta insanidade.

Caminhamos rapidamente para sermos 7 bilhões de seres humanos simultaneamente vivos sobre o planeta.  Muitos bilhões de humanos já existiram nestes últimos 3 milhões de anos e consumiram, mas sem maiores conseqüências, uns mais, outros menos, o necessário para existir.

Porém, no caso do Homo sapiens (os últimos 150 mil anos), particularmente nos derradeiros 10 mil anos e intensamente nos últimos 500 anos, uma parcela ínfima passou a consumir ou acumular muito mais do que o necessário e suficiente para si, obviamente em detrimento da imensa maioria, senão a quase totalidade, dos demais.  A maneira como isto é feito foi se tornando cada vez mais complexa, sofisticada e perversa, não obstante os benefícios e avanços que a acompanharam.  Contudo, em sua essência não houve mudança: como diz a sabedoria popular, o homem continua a ser o lobo do homem.

A mensagem urgente é que um outro mundo não apenas é possível, mas é sobretudo necessário.

Honestidade, transparência, participação não são virtudes elogiáveis: para um mundo saudável, são rigorosamente pressupostos, é condição insubstituível quer para os governos e governantes, quer para os cidadãos em geral.

Portanto, quando vemos as ações dos nossos governos e governantes, de nossos líderes, empreendedores e cidadãos, cabe-nos sempre indagar: está a democracia se fortalecendo?  Está a educação avançando?  Está o tecido social se

adensando?  Está a equidade entre os cidadãos (justiça social) se ampliando?  Como anda a res publica (a coisa pública)?  Deixaremos um mundo melhor e o suficiente para que os que nos sucederão possam fazer sua parte?  Estas questões são válidas pensemos no Brasil, em Santo Antonio do Pinhal ou mesmo no mundo.

O corajoso pensamento do escritor francês André Gide (1869-1951) nos estimula:

O mundo só poderá ser salvo, caso o possa ser, pelos insubmissos.”

Se não fizeres isto, quem o fará?  Se não o fazes logo, quando será?

Paulo Freire (1921-1997, brasileiro), pedagogo, formado em Direito, um dos maiores educadores de nossa época, nos aponta um caminho:

"A melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito.  Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que hoje não pode ser feito, dificilmente eu farei amanhã o que hoje também não pude fazer..."

Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), filósofo romano contemporâneo de Jesus de Nazaré, observou:

Se uma pequena luz te atrai, segue-a; se te conduz ao pântano, logo sairás dele.  Mas, se não a segues, toda a vida te mortificarás pensando que talvez fosse a tua estrela...”

Certa vez, ao lhe perguntarem para quê serviriam as utopias, o escritor Eduardo Galeano respondeu:

"A utopia está lá no horizonte.  Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos.  Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.  Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei.  Para que serve a utopia?  Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

Vejo o aprofundamento da democratização como a melhor solução possível, senão a única, o espalhamento e o enraizamento da compreensão de nossa interdependência, de nossa impermanência e do simples fato de que a vida e seu avanço dependem de cooperação e revezamento, como bem o sabemos os que se dedicaram a conhecer o surgimento e desenvolvimento da vida na Terra.

É urgente prover a cada um o suficiente e conforme sua necessidade, dele recebendo e aceitando segundo suas possibilidades.  Isto é pura ecologia (v. Desenvolvimento e Sustentabilidade, Jul 2008).

Vejo a (grande) utopia feita de muitas (pequenas) utopias, não como um todo pronta e de repente, mas como no surgimento das terras emersas nos tempos iniciais da Terra: ilhas, arquipélagos, acréscimos para então formar um continente.

A utopia de um mundo melhor, uma vida melhor, só está ao alcance da realização se antes de mais nada compreendemos a natureza dos males que nos afligem.  Assim, não é a natureza que deve ser humanizada; nós é que precisamos ser (re)naturalizados.

A grande utopia é permitir-se a coragem de olhar e a ousadia de compreender; e então agir.

Nos próximos artigos abriremos um último e especial capítulo, o das conclusões possíveis sobre o que abordamos nestes dez capítulos desta jornada, tratando, por exemplo, do estado da democracia, de renda básica de cidadania, projetos e caminhos para mudança e mais.