Eleições Recentes e Catástrofes Climáticas (3)

Artigo 58, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Mar 2011

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Bem entendido, poderemos ver este fenômeno repetir-se insistentemente; e sabe-se lá desde quando nós humanos o perpetuamos.

Remeto-me às primeiras décadas do século ou milênio passados, mais precisamente as de 1920 e 1930, para daí eleger a expressão ‘síndrome do Gueto de Varsóvia’ como referência.

A humilhação imposta à derrotada Alemanha ao término da então chamada Grande Guerra (uma guerra capitalista, renomeada depois 1ª Guerra Mundial graças à estupidez que nos levou à segunda) gerou ingredientes perversos, pois a população alemã viu-se submetida a uma segunda devastação de suas energias por conta dos pagamentos intermináveis e abjetos da “dívida de guerra”: pobreza e inflação galopante, logo, miséria crescente e falta de perspectiva, destruíam a autoestima de um povo historicamente valoroso.  A partir de certo ponto de exaustão, qualquer evento que acenasse com o fim desse inferno seria plenamente aceito.  Um certo grupo, liderado por um homem de fluente oratória, que em condições mais civilizadas seria visto apenas como excêntrico, passou, nessas circunstâncias, a cativar audiências e a desenvolver influência política, ganhou apoio popular e amplo financiamento de grupos ricos.

Aqui já citei, quando tratava de ética no artigo Uma Síntese Necessária (Out 2009, onde afirmo “para melhor delimitar a fronteira entre a mentira e o engano, entre a intenção perversa e o equívoco, mormente em uma época em que tanto se fala em desenvolvimento, em sustentabilidade, em democracia, em educação, em honestidade, em transparência e em participação de e para todos”), que “logo que Hitler elegeu-se na Alemanha, em 1933, Bertold Brecht exilou-se (assim como Albert Einstein, Thomas Mann, Stefan Zweig e tantos outros) e, em sua luta árdua contra os fascismos e sua expressão máxima, o nazismo, escreveu em 1934 um texto de clareza meridiana para ser divulgado na Alemanha hitlerista e na Europa”.  Como talvez se recordem, Brecht deu-lhe o título de “Cinco Dificuldades no Escrever a Verdade”.

Com vários anos de antecedência, sabiam estes estudiosos que, dadas a surdez e a miopia generalizadas aliadas a interesses escusos, era já apenas uma questão de tempo, uma nova hecatombe estava a caminho.  Sem deixar de combatê-la, buscaram refúgio em outro lugar.

Quando o nazismo enfim eclodiu a guerra, a Polônia foi seu óbvio primeiro alvo, corredor aberto para os países europeus a leste, presa abatida em menos de um mês.  Varsóvia, a capital, tinha um certo bairro que evoca minha infância (fui criado num bairro de grande mistura étnica, mas com concentração de judeus e italianos).  Mesmo entre o dia da invasão à Polônia e o dia em que finalmente foram erguidos os muros que confinaram o bairro dos judeus, houve um período de meses em que estes poderiam ter buscado fugir da destruição.  Entretanto, em sua ampla maioria, preferiram ali permanecer.  Seu destino, como sabemos, foram os campos de extermínio, salvando-se apenas alguns que contaram com a ação de pessoas destemidas (que arriscaram suas vidas para salvar às deles) ou então simplesmente com o acaso.

É assim que vejo a ‘síndrome do Gueto de Varsóvia’ repetir-se, quando pessoas que habitam uma área de risco ali permanecem mesmo se alertadas, quer pelos sinais que estão à sua volta, quer por outras pessoas que procuram salvá-las da morte certa.

O mesmo pode ser refletido nos momentos de outras escolhas importantes, como a escolha eleitoral, quando e onde eleições são possíveis, legítimas e livres: com assustadora frequência, pessoas, em tese cidadãos livres com o poder do voto, elegem não apenas para representá-las, mas sobretudo para

governar seus destinos, pessoas outras de conhecida má reputação ou incapacidade político-administrativa, a quem delegam (ou antes relegam) o fantástico poder de decidir por si.

Seja por temor ao que ignoram (por exemplo, sua desconhecida coragem), seja por apatia (a inércia depressiva) ou uma “esperta” troca de fantasiosos favores (nada mais estúpido), entregam suas vidas e a de seus filhos a essa escravidão perene, a satisfação dos baixos instintos daqueles que os explorarão como gado, promovendo sua pobreza, sua falta de conhecimento, sua renúncia à vida.  Nas palavras do poeta Oscar Wilde (v. artigo Cidadania e Democracia, Nov 2008), são pessoas que “não vivem, apenas existem”.

Assistiremos por estes dias a uma exibição desta hipocrisia por ocasião da visita do frustradíssimo (e frustrante em escala ainda superior) presidente Barack Obama a nosso país: não virá para prestigiar nossa incipiente democracia, nem para felicitar nossa primeira presidente, embora sua simpatia pessoal protocolarmente o faça.  Virá especificamente para tratar dos interesses maiores e urgentes do ruinoso e declinante império que momentaneamente governa (ainda que todas as recentes evidências indiquem o contrário), ou seja, à sombra da ameaçadora reativação de sua 4ª Frota Naval, destinada a garantir a “liberdade” nos mares do sul, virá tratar daquilo que o candidato derrotado da ‘direita’ e do PIG prometera ao embaixador da maior potência econômica e militar, os EUA: o petróleo do nosso Pré-sal.  Irônica e coincidentemente, virá num momento em que um fenômeno natural (um terremoto extremo seguido de um devastador tsunami) expôs a fragilidade do Japão, até há poucos meses segunda potência econômica (agora ultrapassada pela China, que em menos de 20 anos tornar-se-á a primeira); a lembrança tristemente irônica reside no fato de que o povo japonês, neste momento sofrendo também as graves consequências dos vazamentos de suas usinas atômicas foi, há quase 66 anos atrás, impiedosamente bombardeado pelos EUA com suas armas atômicas, um ato militarmente desnecessário e inútil (o Japão estava à beira da rendição), mas uma clara exibição de força e prepotência num claríssimo cogumelo-recado ao “resto do mundo” (aquela ‘terra incognita’ etc).

É assim, sob este signo perverso, que prospera a concentração de renda, tão mais exacerbada quanto mais “desenvolvido” for o país e sua capitalista economia, a privilegiar o ganho e acúmulo financeiro (a fantasia monetária) sobre qualquer forma de produção real de riqueza, a valorizar o consumo supérfluo e egocêntrico às custas do sacrifício de uma educação para a vida, uma rota célere para lugar algum, um esmerado e suicida despreparo para os enormes desafios em todos os aspectos da vida que estão não mais batendo à nossa porta, mas enfim desabando sobre nossas cabeças, sejam na forma de crise econômica, moral, sanitária, alimentar, política, educacional (enfim, nossa imensa crise civilizatória), sejam na forma de crise ambiental que, tenhamos ou não provocado, insistimos em agravar.

Na história deste planeta, o clima muda e tem mudado (tudo muda); o problema, como veremos em outros artigos, está na superposição de fases a promover um evento ainda maior (ou está ainda, como mencionei, no persistente encontro de equívocos).  Secas prolongadas, chuvas intensas e localizadas, calor concentrado, frio demasiado, terremotos intensos, tsunamis devastadores, erupções violentas são fenômenos naturais e de certa frequência na história da Terra.  Como nos lembra o geólogo estadunidense Michael Rampino, a humanidade atual (que se autodenomina H. sapiens sapiens) “desenvolveu-se principalmente durante uma trégua geológica que talvez esteja prestes a terminar”.

Não me perguntem quando vai começar a mudança; como veremos, já começou.