Renda Básica de Cidadania (10)

Artigo 55, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Dez 2010

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Encerrarei aqui, neste final de 2010, estas reflexões iniciais sobre a Renda Básica de Cidadania (RBC) ao apresentar minha particular visão da RBC.

Penso que a humanidade (H. sapiens sapiens) tem possivelmente o tempo de duas, talvez três gerações, se tanto, para resolver-se.  Caso venha a compreender alguns aspectos da realidade, como

  a) o fato de que é apenas mais uma espécie numa imensa e complexa teia de relações,

  b) o fato de que é parte e fruto de um longuíssimo esforço disto a que denominamos vida, um processo de bilhões de anos a envolver acaso, necessidade, seleção natural e evolução,

  c) o fato de que este processo não envolve apenas competição e prevalência do mais apto, mas fundamentalmente associação e cooperação (v. Espaço e Ambiente, Ago 2006),

  d) o fato de que já soaram inúmeros alarmes a indicar que o modo vigente de exploração dos recursos planetários já ultrapassou há mais de 20 anos os limites da sustentabilidade,

  e) o fato de que tornou-se inadiável admitir que um outro modo é necessário, um outro mundo é possível e que é urgente iniciarmos os procedimentos para alcançá-los,

e assim, à luz destes fatos e da ciência, alterar nosso atual rumo, que aponta em direção a uma abrangente extinção de onde não escaparemos ilesos, caso esta compreensão e milagre ocorram, nossos descendentes terão a sua chance de viver e conduzir a espécie humana a um patamar muito superior.

Certamente não estarei aqui, infelizmente, como muitos de nós não estaremos; mas aqui estarão nossos filhos, os filhos deles e os filhos destes, a assistirem impotentes o definhar de suas ilusões, esperanças e de suas vidas, caso não mudemos o rumo dos acontecimentos.  Os que alcançarem a consciência e a percepção de sua então realidade, no caso da pior hipótese, lamentarão seu destino e talvez, em sua triste misericórdia, amaldiçoem não as gerações precedentes, mas aqueles dentre elas que nada fizeram para evitar o desastre.

Para além das bobagens de filmes catastrofistas como “2012”, ou mesmo “O Dia Depois de Amanhã” (em que pese a pertinência deste), histórias com abordagens como a do filme “Runaway Train” (um trem desgovernado a representar o roldão da vida como está posta) são muito mais sutis e representativas dos nossos graves problemas e de nossa absurda relutância em enfrentá-los.

Todos os pró RBC buscam justificativas éticas, morais, sociais e econômicas para, por meio destes aspectos, explicá-la e defendê-la.  Procuro, para além destas, a razão principal: a sobrevivência da espécie humana e de tudo de que ela depende, uma gestão baseada no conhecimento científico que natural e obviamente contemplará todos esses aspectos, porém, sob uma abordagem integral, ambientalista, como a que venho aqui explicitando há tempos.  Se há aspectos mais relevantes nesta abordagem da realidade, eles são vistos por meio da filosofia política e da ecologia, para não mencionar unicamente as geociências levadas às últimas consequências.

Defendo e defenderei a RBC, afinal, por uma motivação muito simples: vejo-a como parte de um mosaico de pequenas soluções (se é possível o uso do termo “pequena”) que, juntas e no limite, permitirão o salvamento de nossa espécie e de inúmeras outras mais.

Há que alertar, assim, para certa prudência quanto ao alcance da RBC (assim como já mencionei qualidades e limitações de programas de transferência de renda como o virtuoso Bolsa Família): refiro-me à sua incompletude diante da atual etapa do capitalismo.

Explico: há uma argumentação frequente entre os defensores iniciantes da RBC, a de que a mera “injeção” de capital nas mãos dos indivíduos resolverá a questão do desenvolvimento de uma comunidade.  A isto faço a seguinte objeção: não acredito neste desenvolvimento automático caso sejam mantidas as relações habituais entre esses indivíduos e comunidade.

Em outras palavras, numa sociedade (como a nossa, por exemplo) que valoriza o consumismo, o espetáculo, o imediatismo, o niilismo (ou seja, a alienação, a exploração do homem pelo homem), uma economia que favorece a concentração econômica e, assim, a desigualdade, é mais razoável supor que o maior afluxo de recursos pelos dutos de sempre (as relações econômicas preestabelecidas) apenas tornará mais ricos os que já o são, pois os recursos continuarão a fluir preferencialmente em sua direção, mesmo que milhões de pessoas, com justiça, sejam retiradas da miséria.  Poderá ocorrer o que já definimos aqui como crescimento, mas não necessariamente será desenvolvimento (v. Ambientalismo e Desenvolvimento, Fev-Mar 2008).

É preciso que as relações sejam transformadas.  É necessário conhecer a comunidade e sua economia, diagnosticar suas carências e necessidades, identificar suas habilidades e potencialidades, conscientizá-la disto, mobilizá-la e buscar sua articulação na construção coletiva de uma economia que não deixe ninguém para trás, uma economia conhecida como solidária.

Como coletividade, quer no âmbito local, nacional ou mundial, é necessário superar o que podemos entender como ‘a síndrome do Titanic’, a arrogante ignorância sobre os riscos do curso tomado, o desprezo ao conhecimento, a empáfia da pseudo-superioridade, o açodamento para o cumprimento de programas e metas irrealizáveis ou mesmo falsos, a covardia servil.

Seguir pelo rumo do disfarce, da prestidigitação, da procrastinação, dos falsos valores, é perseguir as falsas soluções para os falsos problemas, é a inversão de valores, a glorificação da mentira como se verdade fosse, a nos conduzir para aquilo de que nos adverte Jean de la Fontaine (1621-1695, francês), poeta, fabulista que encantou a infância de gerações como a minha:

Amiúde encontramos nosso destino pelos caminhos que tomamos para evitá-lo."

Um feliz Natal a todos, que nossas esperanças e ações pelo bem comum, renovadas, permitam-nos vida longa e próspera.