Renda Básica de Cidadania (2)

Artigo 47, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Abr 2010

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Prossigamos em nossa reflexão sobre o programa Renda Básica de Cidadania.

Imagine que você está dormindo...  e se vê em meio a um sonho.  Nele, você e mais 99 pessoas encontram-se num navio, uma nau que singra um mar ora tempestuoso, ora aprazível, mas sempre a demandar sua atenção e seu esforço.

Chega a hora da refeição; alguém tem que prepará-la, todos necessitam alimentar-se.  Como se trata de um sonho, você percebe com alguma surpresa que todos os cem viajantes dispõem-se a preparar a comida, no caso, pão; decidem então que todos meterão mãos à massa e serão produzidos cem pães, o suficiente para satisfazer a todos.

Organizado o grupo, dividem-se as tarefas, manipulam-se os ingredientes, cresce a massa, preparam-se os pães e o forno; depois de algum trabalho, os cem pães estão enfim prontos, estalando, é hora da bóia.

O clima de seu sonho, entretanto, começa a mudar e você nota que um pequeno grupo de 10 pessoas, entre os cem viajantes, puxa cerca de 75 pães para si, argumentando com diversas alegações que você não compreende muito bem.  Você e mais 89 pessoas deverão satisfazer-se com os 25 pães restantes...

Você então se dá conta de que a viagem é longa e o destino incerto, com muitas refeições pelo caminho... talvez seja melhor acordar deste pesadelo.

Como vimos no artigo anterior (Renda Básica de Cidadania, Mar 2010), no Brasil, segundo informações do IPEA, 10% da população detêm 75,4% (em 2008) da riqueza nacional produzida (renda e patrimônio), ou seja, proporcionalmente, 10 pessoas retêm 75 pães para si e as outras 90 pessoas deverão satisfazer-se com os 25 pães restantes.

No mundo, segundo estudo da Universidade das Nações Unidas, em proporção, 1 (é isto mesmo, uma!) pessoa retém 40 pães para si; as outras 99 têm 60 pães para satisfazer-se.  Ou, ainda, 10 pessoas reterão 85 pães, enquanto as outras 90 ficarão com apenas 15 pães; pior ainda, destas 90 pessoas, 50 delas deverão dividir apenas 1 pão.

Há quem considere isto normal...

Talvez você e eu concordemos que isto é escandaloso (em Latim significa abominável).  Lembremos aqui que a palavra “escândalo”, conforme nosso dicionário Houaiss, antes vem do grego “skándalon”, com o significado de “pedra, obstáculo que faz tropeçar, tombar”, utilizada para traduzir o termo hebraico “mikchôl”, que é usado no Evangelho no sentido de “momento de decaída, perante si ou os outros, provocado por um exemplo ruim”.

Em nosso país, porém, ainda mais impressionante do que a desigualdade de renda é o escândalo da concentração no uso da terra.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nos dá conta de que o Censo Agropecuário 2006, que visitou mais de cinco milhões de fazendas, mostrou que a concentração de terras persiste no Brasil, há muita terra na mão de poucos: os estabelecimentos rurais de até dez hectares compõem menos que 2,7% da área total; já os de mais de mil hectares somam 43%.

Como agravante, o Censo mostrou que esta distribuição veio piorando nos dez anos anteriores.

Nas palavras da socióloga Brancolina Ferreira, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) na área de desenvolvimento rural, “é uma concentração gigantesca, imoral.  Diante dessa concentração, o número de trabalhadores no campo vem diminuindo ano a ano.  Em dez anos, deixaram de trabalhar nas lavouras 1,363 milhão de pessoasEsse dado dá força para a reforma agrária, o único programa que faz redistribuição de patrimônio.

Há, repito, quem considere isto normal...

O Brasil já abarca 192 milhões de habitantes (IBGE, Agosto/2009) e caminha rapidamente para os 200 milhões de seres humanos, todos, em tese, com os mesmos direitos e deveres quanto a alimento, abrigo, saúde, educação, manutenção de suas vidas e também do tecido social.

Ao refletirmos sobre o desafio de enfrentar estas imensas dificuldades, cabe-nos perguntar: será possível desfazermos tamanha iniquidade, seu séquito de horrores e acordarmos deste pesadelo?

Ao refletirmos sobre os critérios e as maneiras de superarmos estas desigualdades, cujas consequências nos afetam a todos, cabem as perguntas: a cada um conforme seu trabalho? Ou a cada um segundo seus méritos? Ou segundo suas necessidades?

O começo de todas as ciências é o espanto de as coisas serem o que são”, dizia-nos Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo grego, fecundo pensador e pesquisador em inúmeras áreas, discípulo e depois crítico de Platão (v. artigos Ecologia e Educação, Mar-Abr 2007, e Cidadania e Democracia, Out-Nov 2008).

No percurso da vida não há essa coisa pretensiosa e falsa a que chamam “neutralidade”: a qualquer momento, ou fazemos parte do problema ou fazemos parte da solução (criamos problemas, dificuldades ou nos dispomos a resolvê-los).

Vemos no cotidiano, diante disto, pessoas diversas adotarem três posturas básicas:

- pedir que lhe dêem uma solução (é a mão pedinte, a metáfora do pires na mão);

- ofertar uma solução falsa para manter o problema (é a mão que dá tirando, a exploração), sendo que estas duas primeiras posturas alimentam-se reciprocamente;

- oferecer uma solução que demanda participação de quem sofre o problema, para que ele seja de fato resolvido (é a mão estendida a meio caminho, para que a alcancem).

Mas talvez haja mais...

Francis Bacon (1561-1626, inglês), filósofo, cientista, ensaísta, jurista, político, considerado fundador da moderna ciência, assim reflete a respeito:

São todos maus descobridores, os que pensam que não há terra quando conseguem ver apenas o mar.”