Renda Básica de Cidadania (4)

Artigo 49, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Jun 2010

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Nos últimos artigos refletimos sobre o programa Renda Básica de Cidadania (RBC) e examinamos brevemente seu enunciado e sua conceituação, bem como, em contraste, a desigual distribuição, no Brasil e no mundo, das riquezas produzidas.  À luz de certa ética, abordamos assim a extremada concentração econômica, alguns critérios para a superação do impasse, as atitudes encontradas e ainda um resumo da elaboração histórica dos fundamentos da idéia da RBC.

Como vimos, trata-se de um embate milenar, acirrado nos últimos séculos e especialmente nas últimas décadas, gerando desta maneira argumentos em profusão, seja em defesa de uma renda básica universal, seja para combatê-la.

Sem a pretensão de aqui nos aprofundarmos em demasia, vejamos alguns destes argumentos, que me permitirei agrupar em duas categorias, a dos argumentos primitivos (em geral apenas manifestações preconceituosas ou irrefletidas) e a dos argumentos elaborados (que procuram recorrer a considerações socioeconômicas).

Lembrarei antes, porém, o que nos disse Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, 1689-1755, francês), filósofo, escritor, político, criador da Teoria da Separação dos Poderes (executivo, legislativo e judiciário), base das modernas constituições de muitos países, em sua obra “O Espírito das Leis”, publicada em 1748, quase meio século antes da Revolução Francesa:

Os costumes de um povo escravo são uma parte de sua servidão; os de um povo livre são uma parte de sua liberdade.”

Em geral, os que recusam a idéia da RBC recorrem de início a dois argumentos primitivos.  Um deles busca referir-se a citações bíblicas, preferencialmente as do severo Antigo Testamento, como a do “pão ganho com o próprio suor”.  Já o segundo procura recusar a RBC como se esta viesse a constituir “estímulo ao ócio ou à pura vadiagem”.

Quando fui apresentado à idéia da RBC, estas duas considerações vieram-me de imediato à mente; embora pouco elaborados, estes dois argumentos têm a força do arraigamento cultural e não é fácil desmistificá-los.

Já os que aceitam a RBC ou mesmo passam a defendê-la, em geral apontam um estado de desigualdade na sociedade, justificando a idéia da RBC pela caridade (também uma evocação bíblica, esta mais assentada no Novo Testamento, mais generoso) e pela solidariedade para com a pobreza.  Embora movidos por uma importante qualidade humana, a generosidade, compõem ainda uma argumentação primitiva.

Quando estas justificativas confrontam as objeções primitivas mencionadas, em geral o interlocutor que defende a recusa à RBC recorre enfim a um ato de força (é difícil considerá-lo um verdadeiro argumento) que aborta qualquer reflexão possível: reputa a RBC um ato de cunho “eleitoreiro” e põe fim ao eventual debate.

Essas abordagens primitivas ou “comportamento de torcida”, contra ou a favor, estão mais afeitas tradicionalmente ao futebol das últimas décadas ou, nos casos mais graves, à política genérica (a politicagem, não a Política) ou à religião genérica (o fundamentalismo, não a religiosidade).

Que justificativas consistentes embasariam a adoção da RBC?  Que objeções relevantes podem ser contrapostas?

Antes de adentrarmos pelos argumentos mais elaborados, sejam a favor ou contra, convém arejarmos um tanto os já abordados há pouco.

A argumentação do “pão ganho com o próprio suor”, que aparentemente procura valorizar o esforço e o trabalho (enfim, o mérito), pode se tornar enganosa a depender do que venha a ser interpretado como trabalho e esforço.  Até hoje, adentrados que estamos no século 21, dificilmente o trabalho doméstico (seja cuidando do lar, das crianças, dos idosos ou dos doentes) é reconhecido como tal.  As invisíveis relações que mantêm em pé o chamado tecido social jamais serão reconhecidas por certo senador de nossa precária república (que tanto insiste em desqualificar o esforço do senador Suplicy) como uma prestação de serviços.

A engano semelhante conduz ver a RBC como “estímulo ao ócio ou à pura vadiagem”, pois isto pressupõe uma sociedade composta por pessoas desinteressadas na vida, intrinsecamente preguiçosas, como se o ser humano fosse incapaz de interessar-se a não ser obrigado.  Isto simplesmente não existe, a não ser na fantasia desses maus argumentadores.  Não existe isso chamado “preguiça”: o que existe, sim, é uma doença que está levando a humanidade de roldão, doença perfeitamente diagnosticável e tratável (quanto antes reconhecida, menos árduo o tratamento) denominada depressão, fruto principalmente do rumo suicida que a humanidade, em seu conjunto, tomou.

A experiência demonstra, aliás, o contrário deste argumento: a RBC estimula o desenvolvimento pessoal.  Vezes sem conta, tais argumentos, para além de denotar preconceito ou irreflexão, mais do que desconhecimento, revelam simples má-fé.

Albert Einstein ilumina o caminho ao nos lembrar que “qualquer tolo pode fazer as coisas maiores, mais complexas e mais violentas. É necessário um toque de gênio –  e muita coragem – para se mover na direção correta.”