Renda Básica de Cidadania (6)

Artigo 51, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Ago 2010

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Nesta reflexão sobre a conveniência ou não de um programa como a Renda Básica de Cidadania (RBC), elencamos alguns fatos como a má distribuição de renda (da riqueza produzida ou dos meios para criá-la), fruto da extremada concentração econômica, e ainda a profunda desigualdade social.

Evidenciamos estes fatos como origem e motor da horda de problemas que afligem as sociedades humanas, passando pela fome, desnutrição, saúde, desenvolvimento e educação precários, violência, para não mencionar o preparo insuficiente para os desafios da vida até mesmo por parte das classes e grupos que julgam-se mais abastados.

Os vários programas de transferência de renda implementados em diversos países têm logrado algum êxito em ao menos atenuar estes problemas, criando alguma proteção social, sem contudo ter em seu horizonte a sua resolução.  Aliás, o que se tem observado nestas últimas décadas é mais o desmanche de uma política de proteção social nas duas principais economias mundiais, a americana e a européia (esta sendo neste momento enfim ultrapassada pela economia chinesa), tudo feito em nome de uma política “de mercado”, contas públicas deficitárias, competitividade, globalização etc.

O que há de comum a todos esses programas é a sua estrutura básica: a transferência de uma certa quantia submetida a alguns condicionantes.  A quantia é variável para cada país, indo do irrisório ao insuficiente para o real provimento das necessidades básicas consideradas civilizadas.  Já as condicionantes incluem em geral a carência comprovada, a situação da família e até a existência de crianças e se estão indo à escola; mas todas têm em comum a obrigatoriedade do esforço para uma inserção no “mercado de trabalho”.  À primeira impressão do tal “senso comum”, estas condições parecem sensatas e boas.

A idéia de um programa social como a Renda Básica de Cidadania (RBC) também, à primeira vista, parece ser uma evolução natural destes programas.  De fato, o é, se considerarmos sua, já aqui relembrada, longa trajetória histórica de reflexões e experiências.

Entretanto, ao propor que a renda seja garantida a todos (pobres e ricos), seja individual e sem a exigência de qualquer contrapartida, a RBC é sobretudo uma ruptura e um instrumento de transformação, pois traz em seu ventre a percepção de que a riqueza é produzida por todos que exercem alguma atividade lícita (em amplo sentido) e desenvolve a noção de “sócios da nação”, logo, permite enraizar a prática da colaboração e corresponsabilidade e assim aumentar o grau de liberdade do maior número possível de pessoas, senão de todos.

Isto posto, relembremos algumas das questões anteriormente levantadas para esmiuçar os reais fundamentos da RBC e os desdobramentos possíveis de sua implantação, seja para refutá-la, seja para defendê-la.  Que argumentos superiores podem, enfim, ser abordados para contrapor-se à RBC ou para justificá-la?

Ela é de fato de difícil implementação?  O efeito na economia é imprevisível ou administrável?  Qual o efeito político, já que todo ato humano é político?  Qual o efeito psicológico (no indivíduo) ou psicossocial (na coletividade)?  Como responderá o desenvolvimento da comunidade, da sociedade?

Numa de suas obras a respeito, o autor da lei, senador Suplicy, traz as seguintes ponderações:

Conseguiremos erradicar a pobreza absoluta e promover um maior grau de liberdade e dignidade?  Por que pagar também aos mais ricos, se eles já têm suas necessidades vitais atendidas?  Haverá recursos?  Como isto afetará o grau de competitividade da economia brasileira?  Não será melhor primeiro aumentar o valor do Bolsa Família antes da RBC para todos?

Christian Arnsperger e Philippe Van Parijs (este nos honrou com sua visita a Santo Antonio do Pinhal, em Julho), em sua obra Ética Econômica e Social, indagam:

Onde começa o inaceitável?  O que fará com que tenha valido a pena vivermos nossas existências?  É preciso tentar fazer mais justas as nossas sociedades ou tentar torná-las mais livres?  Como resolver os conflitos cotidianos entre nossos prazeres e deveres, entre nossas múltiplas obrigações, entre as expectativas legítimas de nossos parentes e as necessidades vitais dos mais carentes?  É preciso respeitar a lei, mesmo que outros a transgridam, mesmo que muitos outros a transgridam, mesmo que todos os outros a transgridam?  Nas sociedades cada vez mais diferentes, cada vez mais liberadas, cada vez mais desnorteadas [a que acrescento: logo, cada vez mais semelhantes], essas questões são, hoje, mais incisivas e mais urgentes que nunca.

Yannick Vanderborght e Philippe Van Parijs, na obra RBC: Argumentos Éticos e Econômicos, procuram esclarecer aspectos do programa ao colocar suas inquietações:

Uma idéia nova? Uma idéia plural? Uma idéia justa?  Uma idéia de futuro?

Certamente, ante o enorme desafio de procurar responder a estas elaboradas indagações, será prudente estabelecer antes princípios.

Como disseram Arnsperger e Van Parijs, “se a ciência trata do que é, a ética tem por objeto o que deve ser.”  Para isto, utilizaram dois tipos de procedimento: científico (enunciados descritivos – ou juízos de fato) e ético (enunciados normativos – ou juízos de valor).

O que fiz até aqui parece ser eminentemente uma justificativa ética (um modo de ver o mundo, por decorrência, um ato político).  Como pesquisador, devo proceder também ao cuidado e ao rigor científicos.