Renda Básica de Cidadania (7)

Artigo 52, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Set 2010

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Na busca de fundamentos para a avaliação crítica de um programa de defesa social, como o Renda Básica de Cidadania (RBC), devemos então iniciar pelo estabelecimento de alguns princípios norteadores de nosso pensamento e de nossa ação.

Poderá alguém discordar dos preceitos que enunciarei a seguir?  Afirmo como essenciais a todo e qualquer ser humano, e inalienáveis, os princípios que se expressam no:

  - direito à existência;

  - direito à manutenção da vida;

  - direito à liberdade.

Acredito que todos concordarão até aqui.  Melhor compreendidos, estes direitos não se limitam a indivíduos apenas: referem-se igualmente às comunidades.  Tampouco se restringem no tempo: abarcam o presente e o futuro, abrangem tanto os indivíduos e comunidades do agora como igualmente os do devir.

Se os direitos à existência, à manutenção da vida e à liberdade são, em princípio, garantidos a todos e são inalienáveis, então são igual e inexoravelmente limitados pela responsabilidade, pois o exercício destas liberdades não poderá jamais cercear ou prejudicar sua prática por parte de quem quer que seja.

Observamos na prática cotidiana, porém, que com alarmante frequência liberdade é confundida com licenciosidade.  O abuso da liberdade (então licenciosidade) é frontalmente contrário ao pleno exercício desta.  O paradoxo é apenas aparente e isto já foi popularmente resumido na célebre mensagem a dizer que “a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro”, uma clara e singela marca de fronteiras, quer para os indivíduos, quer para as coletividades.

O direito à existência é diariamente agredido de muitas formas e por muitos meios.  A violência pode manifestar-se de maneira extrema, como nos casos do assaltante que mata, da pessoa que resolve disputas pela eliminação do oponente, do estado que pratica a pena de morte ou promove a guerra; mas há ainda as manifestações “mais sutis” (se cabe o termo), como nos casos dos motoristas irresponsáveis de qualquer tipo ou das intolerâncias fundamentalistas (religiosas, étnicas, de opinião), isto para citar apenas as expressões mais evidentes.

O direito à manutenção da vida é afrontado cotidianamente ao serem solapados os meios de prover-se os direitos ao lar, ao trabalho, à educação, ao conhecimento, só para mencionar os mais

relevantes.  A isto me referi quando por vezes aqui apontei o atual e hegemônico modo insano de organização das sociedades: a lógica capitalista, ao privilegiar o aspecto dito ‘econômico’ (segundo sua concepção) de toda e qualquer atividade humana, seja individual, seja social, nos impele para uma maior e crescente particularidade (especialização, alto rendimento específico) por meio da segmentação, isolamento do todo e alienação, a objetivar assim a maximização do lucro e da acumulação particular.  Esquece (ou antes, escamoteia) o real significado do conjunto de atividades necessariamente cooperativas a que a ciência denomina Economia (v. artigos Desenvolvimento e Sustentabilidade, Mai-Jul 2008).

O direito à liberdade é rotineiramente vilipendiado por esse mesmo modus operandi (modo de organizar atividades) que reduz a vida a mera aplicação na sobrevivência, sujeitos que ficamos a um dreno perene de energias para apenas mantermo-nos vivos. Nunca é demais lembrar que no Brasil e em inúmeros países a escravidão já foi lei, só abolida pela introdução de um sistema que permitiu a mesmíssima concentração econômica a um ‘custo menor’.  Alegar-se que no sistema atual todos têm as mesmas oportunidades é um exercício de puro cinismo.

Embora valorizemos, em tese, a democracia, na história humana ela não é uma regra.  Na organização da vida em sociedade, com infeliz frequência ela tem sido inexistente; depois, por meio de extensa luta social, é implantada e é fragilíssima em seus primeiros passos.  Só com o seu exercício, continuidade nessa luta e vigilância constante é que conseguirá passar à condição de frágil, incipiente, com um longo e árduo caminho a criar e percorrer.

A democracia é essencial porque fundamentada num ponto básico ao desenvolvimento humano: a alteridade (v. artigos Espaço e Ambiente, Jul-Ago 2006; Educação e Ambientalismo, Jan 2008; Sustentabilidade e Cidadania, Ago 2008; Cidadania e Democracia, Out-Nov 2008; Uma Síntese Necessária, Set 2009 - Jan 2010).

É preciso ouvir os outros; para isto, é necessário antes admitir o Outro.  Os direitos à existência, à manutenção da vida e à liberdade são erigidos a partir da alteridade.

Talvez o ponto de partida para a grande abordagem seja constituído pela constatação do fato e da escolha perante ele: o fato de que estamos vivos e a escolha sobre se vale a pena viver.

É à luz destes princípios aqui resumidamente abordados que procuraremos responder então às questões e argumentações superiores para uma contraposição à RBC ou para a sua justificação.