Renda Básica de Cidadania (9)

Artigo 54, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Nov 2010

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Restam ainda, nesta etapa de nossas reflexões, duas indagações relevantes a respeito da Renda Básica de Cidadania (RBC): é uma idéia de futuro?  Ela é de fato de difícil implementação?

Deixemos para outro momento as questões sobre seu efeito na economia, seu efeito político, seu efeito psicológico ou psicossocial e como afinal responderá o desenvolvimento da comunidade.

Lembremos por enquanto que há um Estado, criado um dia por acordo social não apenas para o estabelecimento de uma identidade, uma nação, mas principalmente para a regulação das relações entre pessoas, grupos e sociedades.  Isto tem um custo, inclusive um claro custo financeiro, que deve ser suportado pela mesma sociedade (a menos que ela escravize ou parasite outra sociedade). Que serviços este Estado deve prover?

Nos programas já tradicionais de transferência de renda, em geral, há o custo de divulgação e sensibilização, o custo de seleção de beneficiados, o custo administrativo pelo controle necessário ao programa.  Mesmo buscando abrangência, estes programas sofrem ainda uma certa “evasão”, fruto de vergonha (que seria ausente se o benefício fosse concedido a todos), timidez ou ignorância.

A RBC, independente à composição e situação da família, tem as vantagens da eliminação de custos administrativos e de invasão de privacidade por conta das visitas domiciliares de controle; ela pode ainda melhorar a situação dos cônjuges mais vulneráveis por conferir-lhes uma renda própria.

Em relação, por exemplo, ao Bolsa Família, a RBC tem as vantagens: 1) de não impor condicionantes, 2) do término do estigma ou vergonha pela renda insuficiente e a necessidade de complemento, 3) do fim da armadilha do desemprego.

Sem condicionalidades, a RBC traz o benefício da eliminação da burocracia verificadora (carência, filhos em idade escolar) e de quase todos os custos administrativos, além de permitir que seja cumulativa com qualquer outra renda.  Há ainda a remoção da angústia decorrente da incerteza quanto às pessoas poderem minimamente satisfazer suas necessidades vitais.

A RBC pode sobretudo revalorizar a percepção da cidadania por meio da compreensão de que a riqueza é produzida por todos e, em alguma medida real, é redistribuída a todos os sócios da nação.  Assim, sem esquizofrenia ou cinismo, falar de cooperação, associativismo, solidariedade e liberdade começará a fazer sentido.

Não é a ‘economia’ que está (ou deveria estar) na base e sim ‘uma certa economia’: não é o ponto de vista do capital e seus agregados (a direita) – e nem dos que se lhe opõem obtusamente (a extrema esquerda tradicional) – e sim o ponto de vista da espécie humana como tal (a visão ambientalista), como uma entre as inúmeras espécies cuja saúde e sobrevivência depende do conjunto de relações que

estabelece entre seus membros e com as demais espécies.

Como já dissemos, ‘a lógica capitalista escamoteia o real significado do conjunto de atividades necessariamente cooperativas a que a ciência denomina Economia’, que aqui enfatizamos no sentido abordado nos artigos Educação e Ambientalismo (Nov/Dez 2007), Desenvolvimento e Sustentabilidade (Jun/Jul 2008), Conclusões: O Agir (Jun 2009), Conclusões: O Transcender (Jul 2009), Conclusões: O Imaginar (Ago 2009), Uma Síntese Necessária (Set 2009).  É desta forma maliciosa que o ‘econo-tudo’ dá no ‘eco-tudo’, a malbaratar com oportunismo conceitos científicos e éticos e a transformar, por meio dessa vara de condão consumista, pseudociência em moda.

Os caminhos possíveis para a RBC no Brasil e no mundo passam necessariamente pela compreensão e articulação por parte das forças chamadas ‘progressistas’: as forças sociais, os trabalhadores assalariados, os sindicatos, os desempregados, subempregados ou temporários, as organizações políticas, os partidos, ecologistas, liberais de esquerda, socialdemocratas, as esquerdas, os intelectuais, a academia; e talvez, sobretudo, a juventude, esta força sempre a definir-se.

Curiosamente, como nos mostram Van Parijs e Vanderborght, no mundo os sindicalistas não têm manifestado, com algumas honrosas exceções principalmente no hemisfério sul, a compreensão e o apoio que a RBC parece merecer: a defesa da RBC parece partir mais de indivíduos do que de organizações representativas.

No Brasil, entretanto, ela não apenas faz parte do programa do PT - Partido dos Trabalhadores (até aqui o único a adotá-la): surpreendentemente, tornou-se lei federal em janeiro de 2004, como é, ou deveria ser, de conhecimento geral.  Apesar disto, em que pese a laboriosa jornada de seu incansável autor, o senador Suplicy, a RBC aguarda regulamentação e recursos para a constituição de seu fundo provedor.

Em nível local, reproduz-se esta situação em nosso município de Santo Antonio do Pinhal.  Entretanto, por ter aqui participado de todo o processo da RBC desde seu início, malgrado todas as dificuldades interpostas vejo-a como factível e tenho para ela uma proposta que procurarei esmiuçar em outro próximo artigo.

Assim, a RBC é de fato de difícil implementação, menos por questões técnicas ou econômicas e mais, muito mais, por questões políticas.  É sobretudo uma questão de conhecimento, de compromisso, de coragem e de correlação de forças entre os que a assumem como instrumento de equidade social e os que a ela se opõem.

Entre a sua implantação súbita ou o seu simples esquecimento talvez surjam etapas concretas para sua realização plena, onde o Bolsa Família ou mesmo a controversa proposta de um imposto de renda negativo ou ainda uma chamada renda de participação poderão vir a ter um papel relevante.