O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (5)

Artigo 69, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Fev 2012

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Nos cerca de 800 anos em que dominaram quase toda a Península Ibérica, entre os séculos 8 e 15, os muçulmanos nunca tomaram o continente europeu como um todo, pois restaram reinos fragmentados ao norte e a leste que lhes opuseram resistência permanente.  Enquanto isto, o feudalismo foi se consolidando no continente europeu até o século 10.

Pouco depois da primeira invasão muçulmana, já no ano de 756, uma mudança de poder em Damasco (em Árabe, “a Cidade Jasmim”, hoje capital da Síria) obrigou o emirado andaluz a tornar-se independente, tendo se transformado depois no Califado de Córdoba em 929, cuja hegemonia permaneceu relativamente segura até 1031.

Entre os séculos 11 e 15, no período de 1031 a 1492, o domínio árabe viveu a instabilidade: com a assimilação cultural de parte a parte, alimentada ainda pela ambição dos chefes militares e o relativo distanciamento do restante do mundo árabe, crescia a desagregação.  Córdoba chegou a abolir o califado, estabelecendo uma República, e assim por toda a Hispânia formaram-se vários pequenos estados independentes e rivais, as taifas ou reinos islâmicos.  Aproveitando-se disto, os reinos cristãos apressaram o movimento de retomada.

Em resumo, a Reconquista de fato durou toda a Idade Média (entre 1096 e 1272 foram organizadas dez cruzadas cristãs em direção ao Oriente) e só terminou no início da Idade Moderna, em 1492, quando os muçulmanos foram expulsos em definitivo pelos Reis Católicos, Fernando (de Aragão) e Isabel (de Castela), que juntos criaram a Espanha.  Foram exatamente eles os patrocinadores das expedições marítimas de Cristóvão Colombo em busca de caminho alternativo para as Índias, que resultaram no “descobrimento” do continente americano, já profusamente habitado por culturas milenares.

Contrariamente aos costumes muçulmanos, que foram aceitos durante sua invasão até mesmo pelo fato de que defendiam (conforme sua lei sagrada) os judeus que haviam sofrido perseguições pelos cristãos, agora os católicos, intolerantes, “convertiam” a todos à força ou os matavam ou expulsavam do território.

No decorrer da Idade Média, no restante das terras europeias a Igreja Católica fez crescer sua influência sobre o modo de pensar e o comportamento geral, colocando-se como única intermediária entre o Homem e Deus.  Além do poder espiritual, detinha grande poder econômico e patrimônio, pois possuía muitas terras, vassalos e até mesmo servos; garantia assim o controle do saber erudito, retendo informações e conhecimentos importantes para manter seu domínio ao longo de séculos.

Os que questionavam os dogmas instituídos pela Igreja, as “verdades reveladas”, eram tidos como inimigos, os que interpretavam os ensinamentos cristãos de maneira diversa eram apontados como hereges.  Com o objetivo de reprimi-los e manter o controle, a Igreja Católica Romana criou o Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido como Tribunal da Inquisição.  Na verdade, não houve apenas uma única Inquisição: entre 1184 e 1834 várias foram criadas conforme a conveniência política, sendo a mais conhecida a Inquisição Espanhola (1478-1834), talvez decorrente de sua violência e crueldade.

O próprio Papa Sixto IV, que autorizara a criação da Inquisição Espanhola e em 1482 a nomeação pelos reis espanhóis de mais sete dominicanos como Inquisidores (entre eles Tomás de Torquemada, que passaria à História como a face do terror da Inquisição), dois meses depois emitiu uma bula em que concluía que “a Inquisição há algum tempo é movida não por zelo pela fé e a salvação das almas, mas pelo desejo de riqueza”.

Sobre esta, David Landes (1924, estadunidense, historiador) nos relata: "A perseguição levou a uma interminável caça à bruxa, completa com denunciantes pagos, vizinhos bisbilhoteiros e uma racista ‘limpieza de sangre’.  Judeus conversos eram apanhados por intrigas e vestígios de prática mosaica: recusa de porco, toalhas lavadas à sexta-feira, uma prece escutada à soslaia, frequência irregular à igreja, uma palavra mal ponderada.  A higiene em si era uma causa de suspeita e tomar banho era visto como uma prova de apostasia para marranos e muçulmanos.  A frase ‘o acusado era conhecido por tomar banho’ é uma frase comum nos registros da Inquisição.  Sujidade herdada: as pessoas limpas não têm de se lavar.  Em tudo isto, os espanhóis e portugueses rebaixaram-se.  A intolerância pode prejudicar o perseguidor (ainda) mais do que a vítima.  Deste modo, a Ibéria e na verdade a Europa Mediterrânica como um todo, perdeu o comboio da chamada revolução científica".

Durante a Idade Média, o ensino, voltado para o ingresso na vida religiosa, era controlado pela Igreja, sendo o Latim, falado pelos integrantes do clero e pelas pessoas cultas, a língua utilizada para transmitir os ensinamentos. 

Os cursos superiores (gramática, retórica, lógica, música, aritmética, geometria e astronomia) eram orientados por padres ou monges em escolas mantidas nas catedrais.  A Igreja conservava em suas poucas bibliotecas os raros livros que haviam sobrevivido ao tempo das invasões germânicas e os monges copistas encarregavam-se de reproduzir os livros à mão.  Assim, os integrantes da Igreja eram os únicos capazes de lidar com o saber escrito e com o ensino formal.

A Escola de Direito de Bolonha, no norte da atual Itália, foi no final do século 11 a primeira instituição de ensino superior criada, seguida logo depois por outras na Península Itálica, na França e na Inglaterra.  No final do século 14 já eram cerca de quarenta delas em diversas regiões da Europa, disseminação que evidenciava uma relação com o ressurgimento urbano e comercial que ocorria na época e que tornava necessária a existência de letrados para gerir negócios públicos e privados.

Reguladas de início pela Igreja, as universidades no século 14 gradualmente foram voltadas para a vida secular (em Latim, “saeculáris” quer dizer “profano, mundano, relativo ao mundo”), o que incluía cursos de artes e de medicina, além de direito e de teologia.

Os primeiros pensadores medievais, os “doutores da Igreja”, buscando dar forma à “nova religião”, voltaram-se para questões relativas aos dogmas e aos preceitos da fé.  Entre os que ajudaram a verter a religião de Cristo em uma doutrina formal está Santo Agostinho (354-430, nascido em Tagaste, hoje cidade da Argélia), que associou o cristianismo aos textos do grego Platão e seus seguidores.  Depois, São Tomás de Aquino (1225-1274, nascido em Aquino, hoje cidade da Itália), professor da Universidade de Paris e um dos mais importantes doutores da história da Igreja, sintetizou o saber medieval na obra Suma Teológica, abrindo caminho para os que buscariam conciliar fé e razão.

No final da Idade Média, tentativas de mudar as orientações teóricas então vigentes buscavam respaldo nestes pensadores, dentre eles a obra de Roger Bacon (1214-1294, frade franciscano e filósofo inglês), onde estão afirmadas suas preocupações científicas.  Bacon propunha - como meios necessários para se construir o conhecimento - a observação e a experimentação, o que lhe custou a condenação pela Igreja ao cumprimento de catorze anos de prisão.