O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (11)

Artigo 75, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Ago 2012

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É na história da criação do conhecimento humano que se insere o desenvolvimento da ciência; e o desenvolvimento do método científico confunde-se com a criação de ciência, ou seja, não surgiu pronto e acabado e sim como fruto de um longo processo histórico.  Impossível dissociar um do outro; por trás de tudo, uma necessidade perene porque essencial: a sobrevivência.

Quando nós humanos éramos apenas caçadores-coletores, aprendemos que a sobrevivência do indivíduo era necessária à sobrevivência do grupo (e mesmo da espécie, hoje sabemos); os saberes produzidos eram necessariamente compartilhados, ainda que houvesse uma primitiva divisão de tarefas.

Quando descobrimos as possibilidades da agricultura, melhoramos em muito nossas chances de sobrevivência; entretanto, como vimos, além de crescermos em população, passamos a desenvolver práticas cada vez mais excludentes.

O período que temos abordado nestes artigos, entre os séculos 5 e 16, o da ascensão e declínio do feudalismo até o princípio do estabelecimento do capitalismo, é nesse sentido emblemático: ele espelha divisão social do trabalho aprofundada e riqueza, poder e conhecimento concentrados nas mãos de poucos.

Entretanto, vimos também que o renascimento do comércio e o florescimento das cidades, ao criarem uma nova classe social ascendente (a burguesia original), trouxeram consigo novos desafios, novas possibilidades de desenvolvimento em todas as áreas e até mesmo, como então convinha ao capitalismo emergente, a afirmação de conceitos humanistas como liberdades pessoais, direitos religiosos e civis.

Sabemos hoje que os antigos egípcios detinham um grande saber em muitas áreas, principalmente em matemática, geometria e medicina, como fruto de suas necessidades.  Indo além, os gregos foram talvez a primeira civilização a buscar um conhecimento que não tivesse aplicação prática imediata; interessavam-se em saber o “porquê, para quê e como” de tudo o que fosse possível pensar.

Sabemos ainda que o conhecimento humano foi sempre condicionado pela influência das crenças, dogmas religiosos e ritos que, primitivamente, tinham como principal função a tradição e coesão social; finalidade que, entretanto, acabou por ceder prioridade, já há muitos milênios, à dominação e ao controle social.

Como já vimos, na Idade Média europeia a Igreja Católica servia de referência para toda e qualquer ideia a se discutir, exceção feita à Península Ibérica sob domínio muçulmano.  Os documentos e tratados do conhecimento estavam recolhidos aos mosteiros e a população não participava desse saber.

A gradual ascensão da burguesia primitiva, com suas novas necessidades, começou a transformar esse quadro.  Por sua natureza, a burguesia e o capitalismo nascentes demandavam uma mão de obra mais adequada, ou seja, era necessário formar pessoas dispostas e capacitadas para as transformações na produção e na administração das novas riquezas.  Marx e Engels prosseguem, em seu “Manifesto”:

Nós vimos, portanto: os meios de produção e de circulação, sobre cujas bases a burguesia se formou, foram gerados na sociedade feudal.  Em um certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de circulação, as relações nas quais a sociedade feudal produzia e trocava – a organização feudal da agricultura e da manufatura, em uma palavra, as relações feudais de propriedade – não correspondiam mais às forças produtivas já desenvolvidas.  Elas tolhiam a produção, em vez de fomentá-la.  Transformavam-se assim em outros tantos grilhões.  Precisavam ser explodidas, foram explodidas.”

Nada disto se deu pacificamente; ao contrário.

Durante o feudalismo a Igreja havia fortalecido seu domínio no restante da Europa e muitas vezes rei e papa eram papéis desempenhados pela mesma pessoa, numa manifestação absoluta de poder.  A resistência às mudanças era feroz.  As inquisições, iniciadas em 1184 (a Inquisição Medieval, pelo Papa Lucio III), arrastaram-se até 1848 (Inquisição Romana, criada em 1542 pelo Papa Paulo III); na verdade, a Inquisição Romana, também conhecida como Congregação do Santo Ofício, existiu até 1965, quando o Papa Paulo VI a reorganizou sob o nome de Congregação para a Doutrina da Fé.

Os ares das cidades, contudo, estavam mudando há tempos (o período de 1100 a 1300 já foi visto como a Revolução Industrial da Idade Média).

Inovações, como grandes relógios mecânicos, colocados em cidades, além de admiradas passaram a transformar a noção de tempo.  Os óculos, embora de existência rudimentar desde o século I (na forma de lâminas lascadas a partir de pedras semipreciosas), tornaram-se possíveis por volta do ano 1000 graças ao trabalho do matemático e físico árabe Alhazen (Abu Ali al-Hasan Ibn Al-Haitham, 965-1040), que formulou uma teoria sobre a incidência de luz em espelhos esféricos e como isso afetava a visão humana; assim, por volta de 1270, na Alemanha, surgiu o primeiro par de óculos unidos por haste de metal.

A criação e a proliferação de universidades, como já mencionamos, foram acompanhadas pelo seu gradual controle por parte da burguesia emergente; e a criação, em 1440, da prensa de tipos móveis pelo alemão Johannes Gutenberg (1398-1468) possibilitou enfim a publicação em massa de obras antes restritas ao penoso e paciente trabalho dos monges copistas.

Surgiram assim muitas inovações na maneira de se utilizar os meios de produção, como na fundição de ferro e de outros metais, em novas técnicas de serralheria e incisão de pedras e também avanços nas técnicas de construção aplicadas ao estilo gótico então vigente.

Na agricultura foram desenvolvidas ferramentas como a charrua e introduziram-se melhorias nas carroças e carruagens, em arreios para animais de carga e na utilização de moinhos d'água.

Melhorias aplicadas à confecção de mapas e a instrumentos trazidos do Oriente (Extremo e Próximo), como a bússola e o astrolábio, e, por fim, a invenção das caravelas, tornaram possível o início da expansão marítima e comercial europeia e do ciclo colonialista que viria a afligir os povos originais da África e do que viria a ser conhecido como as Américas.