O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (12)

Artigo 76, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Set 2012

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Uma vez colocada em marcha, a História não se detém.  Como aparentemente tudo na existência, o processo não se dá de forma contínua e é pleno de fluxos e refluxos; mas avança, inexorável, e amadurece.

Sem dar-se conta (é possível um sistema dar-se conta?), o feudalismo gestou as condições para o surgimento de outro sistema social que veio a suplantá-lo, o capitalismo emergente a partir do final do século 15 (uma curiosidade histórica: o termo “capitalismo” não foi criado por capitalistas e sim por anarquistas e socialistas, no século 19, para nomear e diagnosticar o sistema que havia se tornado hegemônico.  Os capitalistas e seus teóricos referiam-se a ele como “liberalismo”).

O comércio e a urbanização que geraram as sementes da superação do feudalismo europeu pelo capitalismo trouxeram, como vimos, novas necessidades.  O progresso técnico e científico daí oriundo desenvolveu a tecnologia para as “grandes navegações” além do Mar Mediterrâneo, em busca de novas fontes de recursos e de novos mercados.

Este legado medieval viria a permitir, nos séculos seguintes, a revelação de inúmeras espécies de plantas, animais, climas e formações geológicas desconhecidos pelos europeus, bem como o contato com outros povos e seus modos de vida.

A intensificação do comércio com a Ásia, desde o início do século 15, combinada com as conquistas marítimas, a partir do seu final, diversificaram os produtos de consumo de tal maneira que muitos comerciantes acumularam as riquezas que deram origem à nova classe, crescente em poder e em influência.

Isto também se traduziu na criação e na expansão de outros valores culturais mais afeitos à manutenção desta nova classe, que dispunha de recursos financeiros para suportar e dirigir a produção artística de arquitetos, pintores, músicos, escultores e escritores.  O mesmo valia para desbravadores e pesquisadores.

Cidades florescentes na Península Itálica, como Florença (a pioneira), Veneza (caminho natural de mercadores) e Gênova (onde em 1451 nasceu Cristóvão Colombo), todas elas repúblicas à época, tornaram-se expressão da intensidade deste movimento intelectual e artístico.  Isto deu ao que viria a ser, no futuro, a Itália o reconhecimento como berço da Renascença (período histórico europeu que demarca a transição do feudalismo para o capitalismo ou da Idade Média para a Idade Moderna), com a retomada das referências culturais da antiguidade clássica (gregos e romanos) e de valores mais humanistas e naturalistas.

A ascensão da burguesia primitiva e o Renascimento eram expressões da mesma face histórica: o racionalismo (a razão) contrapondo-se à fé, o antropocentrismo (o Homem como referência) em oposição ao teocentrismo (a divindade como referência) e o individualismo como contraste ao coletivismo cristão.

Joseph Campbell (v. artigo Desenvolvimento e Sustentabilidade, Jul 2008), estudioso profundo da mitologia e da religião comparativas, observa em sua obra O Poder do Mito como a arquitetura das cidades ocidentais tornou-se representativa de seus movimentos históricos: as edificações mais altas tendem a representar e indicar quais são os centros dominantes e de onde emanam os seus valores e os seus mitos.

Assim, na Idade Média, sendo a religião e o poder da Igreja as grandes referências, os edifícios mais altos são as catedrais, como a Catedral de Chartres, na França; já nos séculos seguintes, como decorrência das mudanças sociais e do deslocamento do poder político, eles são os grandiosos palácios dos príncipes, como o Palácio de Buckingham, na Inglaterra.

Todos eles foram afinal superados pelos edifícios das grandes corporações de hoje, notadamente os que exprimem a prevalência da suprema tirania do capital financeiro, como as Torres Gêmeas em Nova Iorque.  Como bem sintetiza o prof. Leandro Marcio Ramos em seu blogue, temos aí um longo percurso “da espiritualidade para o Nada econômico”.

O humanismo emergente da Renascença propunha o estímulo à pesquisa, à crítica e à observação em oposição ao princípio da autoridade.  Assim, a filosofia humanista de então buscava originar um homem de ideais renovados com referências na coragem, na eficiência, na inteligência e no talento para o acúmulo de riquezas, conforme a ordem econômica produzida pela burguesia.  O “novo indivíduo”, despojado da herança medieval, seria capacitado a “expandir-se livremente, liberando sua capacidade criadora e buscando explicações racionais para seu entorno”.

As novas universidades, os instrumentos ópticos e a imprensa aceleraram em muito a propagação destes ideais e dos fundamentos do que viria a se desenvolver como metodologia científica moderna.

Nos séculos seguintes, até o século 18, esta burguesia original foi gradativamente se transformando, tendo desenvolvido características próprias de pensamento: tornou-se cada vez mais pragmática, ou seja, todo pensamento ou esforço deveria buscar uma utilização prática e imediata.

O pensador René Descartes (1596-1650, francês), filósofo, físico, matemático e visto como fundador da filosofia moderna (já mencionado no artigo Ciência, Educação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, Fev 2006), foi uma das figuras-chave na revolução científica iniciada.

Antes dele, Francis Bacon (1561-1626, inglês), político, filósofo e ensaísta, considerado por muitos como fundador da ciência moderna, propunha o método indutivo (v. artigo O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico, Out 2011) na produção de conhecimento, sendo este fruto de experimentações continuadas, na trilha do conhecimento empírico.

Já Descartes defendia o método dedutivo (idem) na criação de conhecimento, por meio da elaboração lógica de hipóteses e da busca de sua afirmação ou refutação.  Este pensamento está explicitado em sua obra Discurso Sobre o Método, de 1637, onde se encontra sua mais famosa frase, “je pense, donc je suis”, mais conhecida em Latim (“cogito ergo sum”) e frequentemente mal traduzida por “penso, logo existo” (para Descartes tinha o significado de “penso, logo sou”).

O método científico desenvolvia-se, assim, como busca de organização do pensamento para se chegar à maneira mais adequada de conhecer; e de “controlar a natureza”...

Este viés, inoculado em sua gênese pelo ideário da nova classe emergente, passou a condicionar todo o desenvolvimento humano desde então.

Sim, como já vimos (*), é possível um sistema dar-se conta; e ele lutará sem limites ou escrúpulos de qualquer natureza para permanecer e perpetuar-se.

(*) o conceito de sistemas foi esmiuçado nos artigos Ambiente e Ecologia (Out-Dez 2006), Educação e Ambientalismo (Nov 2007), Ambientalismo e Desenvolvimento (Mar 2008), Desenvolvimento e Sustentabilidade (Mai-Jul 2008), Sustentabilidade e Cidadania (Ago-Set 2008), Cidadania e Democracia (Out-Nov 2008), Democracia e Utopia (Dez 2008) e sintetizado no artigo Conclusões: O Transcender (Jul 2009).