O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (24)

Artigo 88, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Set 2013

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Entre o final do século 18 e início do século 19, a formulação precisa do modo mecanicista de pensar e praticar, agora consolidada por seu êxito material aparente, especialmente na produção e na geração de riquezas, passou a dominar todas as relações humanas, quer na produção e na economia, quer na cultura, na educação, no direito, na medicina.

O sucesso da emergência capitalista no século 18, com o êxodo rural das populações em direção às cidades que demandavam mão de obra, havia trazido uma novidade de profundo efeito social: pela primeira vez, para o bem e para o mal, casas eram construídas para venda ou locação.

Os inegáveis avanços na qualidade de vida para um número crescente de pessoas pareceram dotar o capitalismo – e seu modo de pensar o mundo – de uma aura de superioridade tal que se anunciava que a humanidade, por meio de sua condução, estaria então atingindo o seu ápice.

No confronto milenar entre razão e fé, todas as justificativas e resultados do pensamento científico expresso nessa vertente mecanicista, então tornada pensamento hegemônico, apontavam para uma crença na “infalibilidade” do modo capitalista de produção.

Ironicamente, na história deste embate, a ideia de “infalibilidade” esteve sempre associada à Igreja e, para os católicos, particularmente ao papa, vistos como entidades infalíveis, que “não se enganam em questões de fé ou de moral”.

Na visão de alguns críticos, entretanto, “controle da natureza” e controle da sociedade eram apenas faces diferentes do mesmo rosto.  Mesmo entre os iluministas já existiam sensíveis diferenças quanto aos propósitos a que a ciência e o progresso emergentes deveriam servir.

Descartes, Newton, Galileu

Assim, pensamento hegemônico, como adiante abordaremos, não significava pensamento único.  Na história da humanidade, a superação de um modo por outro, como vimos, jamais descartou por completo os modos anteriores (v. O Processo do Conhecimento - método científico, Out 2012).

Longe disto, permaneceu a convivência dos paradigmas e também dos modos de produção escravocrata, feudal ou capitalista.  O Brasil foi o último país a abolir formalmente a escravidão (1888), que no entanto não deixou de ser praticada até hoje.  Persistem no mundo humano certas estruturas e práticas dos caçadores-coletores, da escravidão, do feudalismo, do capitalismo e do socialismo, restando irresoluto – e agravado com a preocupante ressurgência dos mais variados fundamentalismos – o choque entre razão e fé.

O paradigma mecanicista firmou-se então porque trazia explicações racionais e verificáveis para os fenômenos estudados e porque suas realizações práticas e o poder da nova classe capitalista fortaleciam-se mutuamente.

O século 19, com uma sucessão de inventos que seriam impensáveis um ou dois séculos antes – como a bateria elétrica, a embarcação a vapor, iluminação de rua a gás, a locomotiva a vapor, melhoramentos nos instrumentos agrícolas e no aço, o telégrafo e a ligação por cabo entre a Grã-Bretanha e os EUA, a criação do Canal de Suez, o telefone, o fonógrafo, a iluminação elétrica, o motor a explosão, a radiotelegrafia – assistia à

ascenção da Grã-Bretanha como potência imperial mundial, que jactava-se de ser o “império onde o sol nunca se punha” (idealização que, de resto, o reinado de Felipe II já havia declarado, no século 16, a respeito de seu império espanhol, dada a extensão de seus domínios).

Numa perspectiva histórica, o processo que envolveu

- a secular expansão colonial dos estados europeus na busca por recursos, mão de obra escrava ou mercados em outros territórios,

- a que sobreveio o rearranjo quase sempre violento de seus estados-nações,

- e depois então sua crescentemente concorrida industrialização por meio da emergência de novos conhecimentos e uma nova classe social, com seu modo capitalista de produção e o acúmulo ávido de imensas riquezas e territórios,

produziu efeitos de amplo significado na jornada humana:

- conduziu inexoravelmente à formação necessária de mão de obra assalariada para a produção, uma nova classe social, os trabalhadores operários, que ao longo do tempo viram-se obrigados às lutas pela criação de organizações trabalhistas para sua defesa (os sindicatos),

- mão de obra esta que também constituía, por necessidade do capitalismo, uma massa social consumidora da produção (os trabalhadores e os “administradores” dos negócios dos capitalistas),

- e levou inevitavelmente às disputas capitalistas que conduziram à Primeira e à Segunda Guerras Mundiais (e a todas as guerras do século 20 e agora 21), o que veio a provar-se, pelo trabalho científico investigativo de inúmeros pesquisadores, como um efeito intrínseco ao modo capitalista de produção e de pensar o mundo.  Em outras palavras, a guerra não é um acidente, ela faz parte das necessidades capitalistas, notadamente em sua etapa histórica imperialista.

O modo feudal e absolutista de gerir o mundo e os povos (e, antes deste, o puramente escravocrata) valia-se do método da autoridade e da força, fundados na fé e na infalibilidade indiscutível do soberano como intérprete do Criador e como seu representante divino.  Assim, exercia seu domínio em nome do Criador.

Charles Chaplin, em Tempos Modernos

Embora subsistisse localizadamente, este modo feudal refluía agora para dar lugar a um novo e mais poderoso: o modo capitalista, sustentado por uma ideologia (modo de ver) fundada na maneira mecanicista de conceber ciência, conhecimento e relações sociais, onde se entende o todo como mera justaposição das partes que o compõem, como num mecanismo de precisa relojoaria.  Assim, o poder e o domínio passavam “racionalmente” a serem exercidos não apenas em nome de um Criador, mas como se fossem o próprio.

Entretanto, como veremos, as “certezas” do modo mecanicista de pensar sempre tiveram um contraponto na história.  Tímido e cauteloso a princípio; mas estimulado pela genuína curiosidade, pela coragem e pelas indagações que permaneciam sem resposta.