O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (31)

Artigo 95, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Abr 2014

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Por motivos distintos, nem Darwin, nem Wallace puderam comparecer à apresentação de suas teorias à comunidade científica londrina, feita por Lyell e Hooker em Julho de 1858.

Apesar do intenso trabalho de divulgação realizado por estes cientistas e amigos, a teoria não despertou muita atenção ou curiosidade no meio científico dominante; apenas algumas resenhas e um comentário depreciativo.

O público, porém, reagiu de maneira bem diversa.

Com a saúde fragilizada, só com muito esforço, e a instância de Lyell, conseguiu Darwin terminar o que considerava um resumo de seu trabalho; o próprio Wallace insistira nisso.  Finalmente, com o título "Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural", publicado pela editora de John Murray, seu livro de divulgação científica foi lançado em 24 de Novembro de 1859.

Além de brilhante cientista, Darwin era também um escritor talentoso e a leitura de sua obra, em linguagem acessível, muito agradável.

A edição de 1.250 exemplares esgotou-se no dia.  Um mês e pouco depois, em 7 de Janeiro de 1860, foi publicada a segunda edição, de três mil exemplares; e a terceira, em 1861.  Ao todo, foram seis edições durante a vida de Darwin e todas acrescidas por contribuições – com o devido crédito – que outros cientistas passaram a lhe enviar e de explicações adicionais para as novas questões surgidas.

Desde logo Darwin explicitou o reconhecimento a trabalhos anteriores, que abriram trilhas de investigação, e particularmente a Wallace, que corroborou suas ideias por um caminho próprio e independente (a sexta edição menciona William Charles Wells e Patrick Matthew, que em 1813 e 1831 tinham desenvolvido ideias semelhantes; mas eles não as haviam elaborado em detalhes em publicações científicas reconhecidas).

Assim, diante do rápido sucesso público da obra, as reações previstas e temidas não tardaram.

O minucioso e preciso trabalho científico de Darwin promovia o deslocamento de vários dogmas:

- contrariando a crença de então, as espécies não eram fixas e nem mesmo poucas;

- espécies eram oriundas de outras preexistentes, sendo que muitas já estavam extintas;

- as sutis mudanças ocorridas num indivíduo (as variedades) só teriam importância se fossem passadas às populações e tornassem o conjunto melhor adaptado ao meio (a "descendência com modificações");

- tudo isto demandava um processo de gerações e muito tempo;

- a humanidade integrava este processo e era apenas uma das inúmeras espécies nele criadas.

Darwin trazia à luz a grande complexidade das relações entre os seres vivos: evidenciava que as interações na luta pela existência, bem mais intrincadas do que o até então imaginado, não eram limitadas à mera competição entre indivíduos pelos mesmos recursos.

Comparando-a com a Física de então, no capítulo 3 de "Sobre a Origem" (Relações Complexas), podia-se ler: "Quando se lança ao ar um punhado de penas, todas cairão no chão de acordo com leis muito bem definidas: quão simples é esse problema comparado com o da ação e reação das incontáveis plantas e animais que determinaram, no decorrer dos séculos, os números proporcionais e os tipos de árvores que crescem hoje nas ruínas indígenas!"

Não era pouca coisa.

A primeira reação, a dos detratores no meio científico estabelecido, apegou-se a uma falsa questão, disseminando a ideia de que Darwin via os "homens como descendentes de macacos"... e não dos desígnios de um Criador.  Darwin jamais disse isto; ele sugeriu que, à luz das descobertas, o Homem e os primatas muito provavelmente teriam um ancestral comum.

Compreende-se: a ciência naturalista, a então História Natural, era dominada por naturalistas clericais (como Darwin quase o foi no início), cuja renda, para "explorar as maravilhas da criação de Deus", vinha da Igreja.

O método da indução e mais ainda o método da autoridade (v. O Processo do Conhecimento, Out-Dez 2011) eram dominantes tanto no meio científico como no meio eclesiástico.  A obra de Darwin abalava profundamente os dogmas em que esta prevalência era assentada.  Ainda assim, alguns jovens clérigos liberais da Igreja inglesa, a Anglicana, apoiaram várias ideias de Darwin.

A segunda reação, a do sistema hegemônico, foi mais sutil e elaborada, digna de um Mefistófeles (em grego, "aquele que odeia a luz").

Como vimos (v. O Processo do Conhecimento, Ago-Out 2013), o capitalismo consolidado em plena Revolução Industrial partia então para sua fase imperialista; eficiência, mérito, competição eram esteios de um ideário que justificava, em seu limite, um direito "natural" ou "divino" no seu modo de ver e administrar o mundo e os povos.

Os trabalhos e as descobertas de Darwin não podiam ser racionalmente refutados por quem tão bem financiava e se apropriava do conhecimento científico e das tecnologias decorrentes.  As pesquisas de Hooker, Asa Gray, Wallace, Huxley e Henry Bates confirmavam e ampliavam Darwin.  As experiências de Pasteur haviam superado em definitivo a antiga teoria da geração espontânea.

Darwin evidenciara o papel do acaso na natureza, em detrimento da crença no propósito divino e no determinismo mecânico, valores a esta altura tão caros ao sistema.  Havia claramente implicações ideológicas, religiosas e sociais em sua obra.

Pretenso admirador de Darwin, Herbert Spencer (1820-1903, inglês), biólogo, filósofo, sociólogo e teórico político, em tese propagou as ideias de Darwin sobre evolução e seleção natural.

Cunhou a expressão "sobrevivência do mais apto" como forma de resumir o trabalho de Darwin.  Daí a esta interpretação ser convenientemente disseminada como "sobrevivência do mais forte", o que revelava um fundamento lamarckiano (v. O Processo do Conhecimento, Jan 2014), foi um pequeno passo; e então transferiu esta noção para as sociedades e nações.  Darwin jamais disse isto.

O liberalismo econômico e social, o "livre mercado" humano, ganhava desta maneira, mediante distorção e fraude conceitual, o status de ciência.

A apropriação indébita do conceito de seleção natural criava a falácia da prevalência da "lei do mais forte", era o uso da seleção natural como justificativa "científica" para a não intervenção do Estado na economia e na proteção aos pobres.

Outros, como Ernst Haeckel (1834-1919, alemão), biólogo, filósofo, médico (v. Ambiente e Ecologia, Out 2006) chegavam a usá-la na proclamação de certas "superioridades raciais".

Alfred Wallace contrapunha-se decididamente a estas ideias (que subvertiam o conceito de adaptação e desta forma lastrearam o que veio a ser conhecido como "darwinismo social"): por Wallace, o Estado devia intervir para corrigir as desigualdades econômicas e sociais e equalizar as oportunidades.

Eram, no geral, reações de uma confusão leiga ou maliciosa entre 'indivíduo' e 'espécie', entre 'confiança científica' e ''; e ambas as reações tão bem sucedidas em sua popularização que até em nossos dias são repercutidas.

Aos primeiros, poderíamos contrapor o diagnóstico de Thomas Paine (v. Renda Básica de Cidadania, Mai 2010): "Argumentar com uma pessoa que renunciou ao uso da razão é como ministrar medicamentos ao morto."

Aos últimos, a aguda reflexão de Voltaire (v. O Processo do Conhecimento, Out 2013): "Só se serviram do pensamento para autorizar as suas injustiças e só empregaram as palavras para disfarçar seu pensamento."

Os detratores aparentavam nada haver entendido; ou melhor, pode-se dizer que haviam entendido muito bem...

Na compreensão de "algo mais e para além" do modo mecanicista de pensar e agir era preciso ir adiante, agora no campo das relações humanas: o quarto pilar, o combate à apropriação indébita.

E ainda um quinto, como veremos, em direção ao universo interior.