O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (32)

Artigo 96, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Mai 2014

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Um dos exemplares da primeira edição (1859) de "Sobre a Origem das Espécies" de Darwin foi adquirido por Friedrich Engels (1820-1895, alemão), filósofo, cientista social, teórico político e escritor.

Empolgado com a leitura, em poucas semanas Engels escreveu a seu já então grande amigo Karl Marx (1818-1883, alemão), filósofo, economista, cientista social, historiador e jornalista, relatando: "Darwin, a propósito, a quem estou lendo agora, é absolutamente magnífico".  E logo a seguir, como presente, remeteu-o ao amigo.

Marx e Engels haviam se conhecido, jovens, por cartas, em 1841, tendo Engels aí se tornado colaborador da Gazeta Renana, jornal editado por Marx.  Só foram encontrar-se em Novembro de 1842, em Colonia, quando Engels mudava-se para Londres, passando em 1843 a cultivar grande amizade e íntima colaboração intelectual, que permaneceriam até o final de suas vidas.

Um Engels relutante fora então enviado à Inglaterra para cuidar dos negócios da família, que com isto esperava mudar as convicções e os estudos a que o jovem vinha se dedicando.  Ao contrário, o seu testemunho atento às condições de sobrevivência e trabalho a que viu submetidos os operários e operárias, adultos ou crianças, nas favelas das cidades de Manchester e Salford, e o choque que isto lhe causou, deram substância ainda maior a seus estudos e análises.

Foi em Manchester, ainda em 1843, que escreveu seu primeiro trabalho sobre Economia Politica, o "Esboço de uma Crítica da Economia Política", publicado na revista Anais Franco-Alemães, editada por Marx em Paris.  Aí também escreveu, em 1844, uma série de artigos chamada "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra", publicada como livro em 1845 (a versão inglesa só foi editada em 1887), onde descrevia em detalhes a miséria vivida pelos trabalhadores e apontava o "futuro sombrio do capitalismo e da era industrial".

Estes primeiros trabalhos de Engels traziam já vários elementos conceituais do que viria a ser conhecido como socialismo científico.

É no final de 1844 que surge a primeira obra elaborada pelos dois, "A Sagrada Família", em que Engels e Marx criticam o idealismo dos jovens hegelianos de esquerda, particularmente os irmãos Bauer, e reelaboram a dialética de Hegel.  Nela se encontram os fundamentos da interpretação materialista da história humana e do materialismo dialético.

Na obra seguinte, "A Ideologia Alemã", escrita também em colaboração entre 1845-46, eles enfim se desprendem das influências anteriores (Hegel e Ludwig Feuerbach) e surgem como pensadores seguros de suas próprias concepções.  Era a primeira demonstração amadurecida do que se tornaria conhecido como materialismo histórico: defendia "uma concepção da história que procura a causa primeira, e o grande motor de todos os acontecimentos históricos importantes, no desenvolvimento econômico da sociedade, na transformação dos modos de produção e troca, na divisão da sociedade em classes que daí resulta e nas lutas destas classes entre si".  A obra não encontrou à época, entretanto, nenhum editor disposto a publicá-la.

Nesta etapa histórica o embate entre fé e razão tinha outro nome: idealismo versus materialismo (termos estes com significados muito diversos dos hoje empregados pelo senso comum).  E, para o sistema dominante, apenas um tema levantava mais repulsa do que a "evolução darwinista": tratar de "materialismo".

Grosso modo, o idealismo acreditava que os fenômenos, eventos, ambiente, sociedade e suas relações eram criações de vontades divinas (era o mundo interpretado como ele "deveria" ser).  Para Hegel, era a ideia que criava a realidade; admitia, entretanto, "a história da humanidade como um processo evolutivo que, por natureza, não pode encontrar a sua solução intelectual na descoberta de uma pretendida verdade absoluta" (Engels).

Já o materialismo propunha o entendimento de que tudo isto mantinha relações dialéticas entre si (v. artigos "Uma Síntese Necessária", Dez 2009, em que tratamos de dialética, "nada é (apenas) o que parece"), ou seja, tanto a vida era modelada pelo ambiente como também, em consequência, ela o modelava.

A concepção filosófica do mundo em Engels e Marx, o materialismo histórico e dialético, apresentava propostas para sua compreensão e transformação, criando o socialismo científico (em oposição ao socialismo utópico, então em moda nos círculos ditos progressistas).

Engels e Marx haviam desenvolvido, antes mesmo do início de sua cooperação, cada um por via própria (assim como aconteceria com Darwin e Wallace sobre seleção natural e evolução), os elementos teóricos que os levariam à concepção materialista da história, ao socialismo científico e à hipótese comunista.

Em "A Ideologia Alemã", os autores afirmam: "Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história.  Podemos olhar para a história por dois lados e dividi-la em a história da natureza e a história dos homens.  Os dois lados são, porém, inseparáveis; a história da natureza e a história dos homens são dependentes uma da outra, enquanto os homens existam.  A história da natureza, a chamada ciência natural, não nos preocupa aqui…"

Marx e Engels não tinham como saber, a essa altura, que um certo pesquisador inglês já havia elaborado uma interpretação materialista da história da natureza e que ainda levaria mais 14 anos fundamentando-a em segredo, tão chocado ficara com as óbvias implicações científicas, culturais, políticas e religiosas de suas descobertas.

Marx demorou-se na leitura de "Sobre a Origem das Espécies" de Darwin e apenas em Dezembro desse ano de 1860 pode comentar em carta a Engels: "Nestas últimas quatro semanas, eu li todos os tipos de coisas.  Entre outros, o livro de Darwin sobre a seleção natural.  Embora desenvolvido no rústico estilo inglês, este é o livro que contém, do ponto de vista das ciências naturais, a base correspondente ao nosso ponto de vista".

Fernando Pessoa, nosso maior poeta em língua portuguesa moderna (já aqui citado nos artigos Democracia e Utopia, Dez 2008), assim expressava seu entendimento disto, em 1926:

"Cumpre, porém, e sempre, advertir que a realidade não é uma régua, nem uma série de caixas: não tem marcas distintas, nem conhece separações absolutas.  Quando, portanto, estabelecemos, para nossa conveniência mental, “fases” e “períodos” na vida e na história, e indicamos certos fenômenos como sinais do princípio e do fim dessas fases, não devemos esquecer que esses fenômenos, que nos servem convenientemente de balizas, não são instantâneos, mas prolongados; e que, assim, há um largo espaço em que duas “épocas” sucessivas se confundem e se misturam, a ponto de não podermos bem dizer se tal ano ou caso está em uma ou outra delas, ou se não estará, por assim falar, em duas ao mesmo tempo.  Com esta reserva fundamental têm sempre que entender-se as classificações que se fazem na vida e, sobretudo na história."