O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (35)

Artigo 99, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Ago 2014

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A essa altura do século 19, o grau de complexidade da aplicação do método científico no âmbito das pesquisas sociais (economia, política, cultura) implicava desafios de difícil transposição. Não era um problema de laboratório, o tempo necessário transcendia uma vida, o volume de trabalho demandava muitos cérebros, o ambiente era hostil e era necessário ganhar o pão de cada dia.  Marx, principalmente, e Engels consumiram-se nessa tarefa.

Com suas pesquisas e descobertas, ao lado de sua divulgação e engajamento político nos conflitos de sua época, Engels e Marx deram enorme contribuição à compreensão do processo histórico do desenvolvimento das sociedades humanas e levaram a aplicação do método científico a âmbitos ainda desconhecidos.

Antes deles, pensadores franceses do Iluminismo como Pierre-Simon Laplace (1749-1827), Henri de Saint-Simon (1760-1825) e Auguste Comte (1798-1857) já haviam proposto que o método científico, com a dependência circular entre teoria e observação, deveria substituir a metafísica no processo de construção do pensamento.

Na esteira dos trabalhos de Newton (v. O Processo do Conhecimento, Jun-Ago 2013), Auguste Comte, talvez o primeiro filósofo da ciência (estudo histórico dos fundamentos, métodos e implicações da ciência), chegara a propor uma “física social” (depois conhecida como “sociologia”), criando uma doutrina conhecida como “positivismo”, uma concepção da sociedade operando sob leis gerais, como o mundo físico.

Sua reformulação foi elaborada décadas depois por Émile Durkheim (1858-1917, francês), filósofo, advogado e economista, que, na esteira de Darwin, Engels e Marx, criou uma metodologia de estudo das relações sociais, “as regras do método sociológico”, fundamentada nas ciências naturais e reconhecendo uma espécie de “consciência coletiva”, formada durante o processo de socialização dos humanos.

Dentre as descobertas de Marx e Engels, duas sobressaem por sua relevância e perenidade:

- o materialismo dialético aplicado à História (materialismo histórico) como método de investigação das sociedades humanas;

- as descobertas de Marx da produção capitalista por meio do que denominou “mais-valia”.

Em resumo, “mais-valia” era entendida como o “lucro, retido pelo capitalista, resultante da diferença entre o que ele paga pela mão-de-obra e o valor que ele cobra pela mercadoria produzida por essa força de trabalho”; de certa forma, é “fração do trabalho não paga”.

Para ele, esta descoberta revelava dois aspectos, a que chamou de “mais-valia absoluta” e “mais-valia relativa”.

Sucintamente, em sua produção, eles poderiam ser compreendidos desta maneira:

- mais-valia absoluta: as pessoas trabalham mais horas recebendo os mesmos salários, o que obviamente aumenta a produção; mas pode ser também uma redução dos salários sem reduzir as jornadas de trabalho, causando o mesmo efeito (isto era comum à época, mas existe até hoje);

- mais-valia relativa: os salários e as jornadas de trabalho são mantidos, mas eleva-se a produção por meio da introdução de novas e melhores tecnologias e técnicas de administração, o que aumenta a produção e o trabalho não pago (a forma preferida de exploração do capitalismo mais desenvolvido).

A apropriação indébita, por parte dos pensadores do capitalismo, dos conceitos de “luta pela vida” evidenciados por Darwin (v. O Processo do Conhecimento, Abr 2014), deturpando-os para uma “lei do mais forte”, aliada a uma crescente valorização do individualismo, buscava emprestar “naturalidade” à ideia de supremacia do papel do indivíduo nos destinos do mundo.

Como diz o Prof. Igor Carneiro Leão, “ao estudar a história humana, Marx faz uma crítica à postura de individualismo metodológico adotada na economia política burguesa.  Partia-se, no exame do fazer humano, do ser individual, que já conteria em si o potencial acumulado de conhecimento do conjunto da sociedade.  Trata-se de uma “robinsonada”, de uma recriação do mito de Robinson Crusoé.  Para Marx, ao produzir a vida material, os homens entram em relações de produção determinadas socialmente, e tratava-se de ver a produção humana como social.  Por outro lado, a essas relações correspondem, subordinadamente, forças produtivas dentro das quais se desenvolve o trabalho humano social.  Essa articulação, entre relações sociais de produção e correspondentes forças produtivas, Marx denomina ‘modo de produção’, que forma grandes padrões de produção material caracterizando, com a sociedade, a política ou as ideologias articuladas em conexões de sentido com o ‘modo de produção’, os grandes períodos da história humana.  Assim, temos o feudalismo e a servidão ou o capitalismo e o trabalho assalariado.

... Ao mesmo tempo, não há em Marx nenhuma indicação de que a passagem de um a outro padrão civilizacional represente um avanço ético ou ideológico, como se pudéssemos comparar a Antiguidade com a Idade Moderna e decidir sobre a superioridade de uma delas. O único sentido em que se pode falar em avanço é no do desenvolvimento das forças produtivas, incrivelmente maiores sob o capital e o trabalho assalariado.  É, aliás, esse avanço que permite a esperança de libertação do homem de suas necessidades e a conquista de sua liberdade sob um modo de produção [socialista] que possa liberar ainda mais intensamente a capacidade produtiva social do trabalho.

... Da mesma forma, olhar a história natural de uma óptica evolucionista, no sentido aqui empregado, implica em assumir uma superioridade da espécie humana sobre as demais, justifica o uso utilitário e cruel da vida animal e do ambiente e, no passado, serviu para supostamente validar uma ciência de medida do homem que embasaria comparações entre grupos humanos, decidindo a superioridade do homem branco de origem europeia sobre os demais e a validade de sua ação no mundo dos que lhe são inferiores.  Felizmente, o desenvolvimento da ecologia e da genética destruiu essas fantasias perversas e abriu parâmetros científicos decidindo a igualdade da espécie humana e a solidariedade das espécies na Terra.  O desenvolvimento das ciências da natureza e do homem deu, pois, razão à recusa de Marx e Darwin em assumir uma postura evolucionista em ambas, destruiu arraigados preconceitos de “raça”, classe e gênero que apenas subsistem no domínio da ignorância ou da conveniência”.

Assim é o papel do indivíduo na História, como bem demonstrou o russo George Plekhanov (1856-1918), pensador, escritor e ativista político: nem determinante, nem irrelevante; importante, mas subordinado às forças históricas.

Se o método científico já amadurecera o suficiente para ter enveredado pelo desbravamento da organização e funcionamento de nossa espécie (a Sociologia), chegava então a hora histórica de arriscar-se na exploração de outro universo, este agora interior.

Era o momento de erguer-se mais um pilar, o quinto, a ver o que mais havia para além do modo mecanicista de pensar e praticar o mundo: era a vez de Sigmund Freud e a criação da Psicanálise.