O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (48)

Artigo 112, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Set 2015

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A exemplo da imensa maioria dos grandes cientistas, sejam homens ou mulheres, Jöns Jacob Berzelius (1779-1848, sueco) não teve uma vida fácil, glamorosa e gloriosa, como sempre quer nos fazer crer a História tradicional dos eventos humanos, tão pouco afeita à realidade.  A começar pela infância: cedo perdeu o pai, diretor de uma escola primária e pastor luterano.  Sua mãe, que se casou novamente com um pastor já viúvo, veio a falecer alguns anos depois, o que o levou a viver alternadamente com outros parentes do campo, depois que o padrasto voltou a casar-se.  Foi um longo tempo de pobreza.

Seu esforço e obstinação, entretanto, o levaram a concluir os estudos e, aos 18 anos, conseguiu ser admitido no curso de Medicina na Universidade de Uppsala, que só conseguiu concluir, depois de tê-lo interrompido, por meio de uma bolsa de estudos, pequena, mas salvadora.

Ali Berzelius conheceu a obra Fundamentos da Química Antiflogística, de Christoph Girtanner (1760-1800, alemão), assim entrando em contato com os trabalhos de Lavoisier.  O “flogisto” era uma ideia ainda vigente que propunha que os corpos combustíveis seriam dotados de uma matéria a ser liberada no ar durante uma combustão, no caso de matéria orgânica, ou calcinação, no caso de metais.  Lavoisier, apoiado pela descoberta do oxigênio por Joseph Priestley (1733-1804, inglês), refutava isto.  Foi Lavoisier quem deu nome ao oxigênio; por ironia científica, Priestley era um apoiador da ideia do flogisto.

Não obtendo permissão de acesso ao laboratório da universidade, Berzelius não hesitou em dispender suas poucas energias na montagem de um, improvisado em um pequeno quarto alugado.  Com simplicidade, caraterística que manteve ao longo da vida, fazia seus próprios instrumentos; e trabalhava com afinco e até o esgotamento, o que mais tarde lhe traria sérios problemas de saúde.

Graduou-se e doutorou-se em Medicina, investigando aplicações da pilha de Alessandro Volta no corpo humano.  Depois, passou a concentrar-se nos estudos da eletroquímica e na química analítica, que se tornaram o centro de seus trabalhos.

As barreiras ao seu progresso científico logo se mostraram.  Por ser um defensor das ideias antiflogísticas, não era aceito nos meios científicos; sua apresentação de um trabalho à Academia Real de Ciências, baseado na nomenclatura de Lavoisier, foi rejeitada.  Em dificuldades, procurava manter-se com aulas particulares, logo inviabilizadas.  Com sócios, tentou negócios na área química, que não prosperaram, criando dívidas que lhe consumiram anos de trabalho.

A afinidade de interesses, entretanto, descoberta no contato com um mineralogista e químico amador, Wilhelm Hisinger (1766-1852, sueco), de rica família proprietária de minas, veio em seu socorro.

Juntos, Berzelius e Hisinger passaram a desenvolver novas pesquisas e Berzelius pode assim dedicar-se a estudos sobre os efeitos da eletricidade nas soluções salinas, tendo ambos publicado um trabalho pioneiro sobre dissociação de sais por meio da eletrólise (que basicamente é a decomposição de substâncias por meio de corrente entre polos elétricos opostos, sendo possível a obtenção de elementos químicos separados).

Este trabalho foi praticamente ignorado pelo meio científico.  Anos depois, entretanto, pesquisa semelhante publicada por Humphry Davy (1778-1829, inglês), que viria a ser mentor de Michael Faraday (1791-1867, inglês), obteve ampla aceitação, para fama e fortuna de seu autor.

Passo a passo, Berzelius conseguiu ser contratado como químico expositor na Academia Real de Guerra, de

Karlberg, e depois também como professor de medicina e farmácia na Escola de Cirurgia de Riddarholm (esta Escola deu origem ao Instituto Karolinska, por onde Berzelius, em 1832 e com apenas 53 anos, viu-se obrigado a aposentar-se por problemas de saúde).

A relativa estabilidade afinal conseguida permitiu-lhe avançar nas pesquisas sobre as proporções gravimétricas, o estudo das relações entre as então chamadas substâncias “simples” (como Robert Boyle havia denominado o que hoje conhecemos como elementos químicos) na formação de compostos.

Berzelius começava ali a estabelecer os fundamentos da estequiometria, o estudo da proporção dos elementos químicos num composto (em grego, “stoikheîon” é elemento e “metriå” é medida).

Paulatina e perseverantemente, conquistou reconhecimento em seu pioneirismo, foi eleito membro da Academia Real das Ciências da Suécia; pouco depois, tornou-se seu presidente.  Agora com apoio do governo, conseguiu equipamentos e iniciou, com assistentes, uma ampla e profunda pesquisa de análise química que transformaria o mundo científico.

A notação moderna para fórmulas químicas é um dos frutos de seu trabalho revolucionário: tornava-se possível representar uma substância tanto do ponto de vista qualitativo de seus componentes quanto quantitativo em suas proporções (por exemplo, H2O, a fórmula da água, que Berzelius anotava de início como H2O).

Assim, o nome latino dos elementos foi abreviado para uma ou duas letras e os números justapostos indicavam o número de átomos de cada elemento (H para hidrogênio, O para oxigênio, C para carbono, Fe para Ferro etc).

Descobriu e isolou novos elementos como cério, selênio, silício, zircônio, titânio e tório.  Em 1818 organizou uma tabela de pesos atômicos relativos que abrangia todos os elementos então conhecidos, onde tomou o oxigênio como referência, atribuindo-lhe o peso 100, trabalho que reforçou as evidências em favor da teoria atômica proposta por John Dalton e mostrou que, diferentemente do que pensava Proust, os demais elementos não eram constituídos por átomos de hidrogênio, já que seus pesos atômicos não eram múltiplos inteiros do peso do hidrogênio.

Os termos isômero, catálise, polímero e alotropia foram introduzidos por ele, embora hoje seus significados difiram um tanto dos originais.

Foi importante ainda no campo da biologia, sendo o primeiro a fazer a distinção entre substâncias orgânicas (que têm o carbono como componente) e inorgânicas, criando o termo proteína.

A Química ganhava o status de ciência e firmava o fundamento de que a matéria é composta de elementos químicos, descolando-se de vez da historicamente importante, mas superada, alquimia.