O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (52)

Artigo 116, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Jan 2016

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Das questões não resolvidas que haviam desafiado Lavoisier, uma era a decomposição de duas substâncias então muito empregadas na produção de sabões: a potassa e a soda.  Com o persistente insucesso nesta operação (hoje chamada dissociação), Lavoisier chegou a aventar a possibilidade de que talvez fossem elementos; mas previu que no futuro ele ou outro pesquisador conseguiriam desdobrá-las.

Químico, poeta e inventor, Humpry Davy (1778-1829, inglês) duvidava de que fossem elementos.  Assim, procurou novas maneiras de tentar sua dissociação, a começar pela potassa, nome oriundo do holandês “potasschen”, “cinza de panela”, por ser obtida de restos da queima de lenha (ainda hoje, em áreas rústicas, as cinzas são empregadas na produção de sabão).

Davy, desde 1798, fora encarregado de investigar, pela Pneumatic Institution de Bristol, os possíveis benefícios medicinais dos ares artificiais (gases).  No início dos anos 1800, embora não pretendesse abandonar a pesquisa médica, Davy, interessado em eletricidade e conhecido por suas experiências temerárias, logo decidiu incorporar o uso da pilha de Volta em seus ensaios.

Conhecidos desde tempos imemoriais, dos fenômenos elétricos pouco ou nada se sabia sobre sua natureza.

Alessandro Volta (1745-1827, italiano), físico e pesquisador da eletricidade, havia criado em 1800 um dispositivo capaz de produzi-la, logo conhecido como “pilha de Volta”.  Este primeiro gerador estático de energia elétrica era basicamente um empilhamento de pequenos discos alternados de dois metais distintos e entremeados por tecido embebido em ácido sulfúrico.

Volta discordava de Luigi Galvani (1717-1808, italiano), médico anatomista e físico, para quem a energia elétrica era produzida nos músculos de animais: para Volta, a eletricidade tinha origem nos metais.  Depois de testar várias combinações, obteve os melhores resultados com cobre e zinco; a pilha sempre produzia corrente elétrica quando um fio condutor era ligado a seus extremos, um disco de cobre, o outro de zinco (em sua homenagem, a unidade de medida elétrica recebeu em 1881 o nome de Volt).

Humpry Davy, alçando-se à maioria dos químicos da época, que atribuíam o efeito elétrico aos metais, supunha que havia algo mais profundo: para ele, era uma reação química que produzia a corrente elétrica; e se sua hipótese fosse correta, então talvez uma corrente pudesse, ao inverso, provocar uma reação química.

Nomeado em 1801 professor da recém-fundada Royal Institution, Davy ali tinha à sua disposição já em 1802 o que deveria ser a mais potente pilha elétrica de então.  Num dos experimentos criou a primeira luz incandescente por meio da passagem de corrente numa fina tira de platina, metal escolhido por seu alto ponto de fusão.  Mesmo não sendo muito brilhante nem duradoura, foi valiosa por demonstrar o princípio usado: em 1806 ele foi capaz de exibir à Royal Society (que viria depois a presidir) uma forma de luz elétrica bem mais poderosa, produzida por um arco elétrico entre duas hastes de carvão.

Pesquisava cal na tentativa de isolar mais um elemento (que viria a ser o cálcio).  Soube então que Jacob Berzelius e Magnus Pontin haviam preparado uma amálgama por eletrólise de cal em mercúrio; e tentou o mesmo caminho (“eletro” + ”lise”; em grego “lúsis” é “ação de separar”).  Assim, trabalhou com eletrólise ao longo de sua vida, conseguindo isolar magnésio, boro e bário.

No início de novembro de 1807, ano em que se tornou um dos fundadores da Sociedade Geológica Britânica, decidiu experimentar a eletricidade na possível dissociação da potassa, acreditando que tanto a potassa como a soda poderiam ser compostos de nitrogênio.

Usando os princípios da pilha de Volta, construiu “uma bateria elétrica de 250 placas de cobre e zinco em plena atividade”, conforme seu relato à Royal Society, e testou os eletrodos em cristais de potassa derretidos por aquecimento.

O resultado foi surpreendente: viu surgirem da pasta pequenos glóbulos de aparência semelhante ao

mercúrio, que imediatamente se inflamavam em contato com o ar, produzindo um intenso clarão rosa.  Ele sabia que tinha encontrado um novo elemento.

Uma semana após, repetindo o experimento agora com a soda, surgiu nova revelação.  Poucos dias depois, numa carta ao amigo W. H. Pepys, Davy escreveu: “Decompus e recompus os álcalis fixos e descobri que suas bases são duas novas substâncias inflamáveis muito semelhantes a metais; mas uma delas é mais leve do que o éter, e infinitamente combustível.

Refletiu sobre estas propriedades e a forma de classificar as novas substâncias, a que deu os nomes potássio e sódio.

Ao anunciar seus experimentos e resultados numa conferência, no final de novembro, considerou: “Deveriam as bases da potassa e da soda ser chamadas de metais?  ...Essas bases concordam com os metais em opacidade, brilho, maleabilidade, poderes de condução de calor e eletricidade e em suas qualidades de combinação química. Sua baixa gravidade específica não parece ser razão suficiente para fazer delas uma nova classe.”

Embora tivesse logo classificado potássio e sódio como metais, nenhum consenso se estabeleceu de imediato na comunidade química, discussão que perdurou até 1810, ano em que foi eleito também membro estrangeiro da Academia Real das Ciências da Suécia.

Pioneiro na eletrólise pelo uso da pilha voltaica, Davy descobriu o potássio e o sódio em 1807, o cálcio em 1808, confirmou e nomeou o cloro em 1810 e o iodo em 1813, tendo ainda isolado magnésio, estrôncio e bário.

O potássio foi o primeiro elemento metálico isolado por eletrólise.  O nome latino da potassa era Kalium, oriundo do grego “κάλιο”, o que deu origem ao símbolo K para o potássio (“kalium”, da planta cujas cinzas eram usadas para curar dor de cabeça e também para sabão, hoje chamada Salsola kali).

Metal leve, prateado, macio e séctil (facilmente cortado), o potássio reage explosivamente em contato com a água.  Essencial à vida humana, por manter músculos, rins e transmitir impulsos nervosos, pode, como tudo, ser letal em alta dosagem (na forma de cloreto de potássio).  Sua descoberta permitiu ainda a revelação de outros elementos, já que, por sua elevada reatividade, é capaz de decompor óxidos, retirando-lhes o oxigênio; deste modo foram isolados o silício, o boro e o alumínio.

Duas importantes contribuições podem ainda ser creditadas a Davy.

No retorno à Inglaterra em 1815, fez experiências com lâmpadas para minas de carvão, pois havia muitas explosões de gás metano inflamado pela chama das lâmpadas dos mineiros.  Usou então uma gaze de ferro para delimitar a chama da lâmpada, impedindo a passagem da queima de metano em seu interior para o ambiente.  Recusou-se a patentear a lâmpada; e foi depois condecorado com a medalha Rumford, em 1816.

Antes disto, ainda em Bristol, tornara-se amigo de Gregory Watt, James Watt, Samuel Coleridge e Robert Southey, compartilhando com eles o uso de óxido nitroso (gás hilariante), sintetizado em 1772 por Joseph Priestley.  O gás até mesmo foi usado com vinho para a avaliação de sua eficácia na cura de ressaca, com sucesso.  Davy observou que poderia ser útil em intervenções cirúrgicas, mas anestésicos não foram utilizados na medicina ou odontologia senão décadas após a sua morte.

Davy acrescentou seis elementos à lista de Lavoisier, quando o conceito de elemento estava firmemente estabelecido, morrendo cedo, em 1829, talvez em decorrência, como tantos outros, da manipulação primitiva e imprudente de tantas substâncias tóxicas.

Os elementos conhecidos eram já 55, uma paisagem química bem ampliada; mas ainda sem uma lógica visível no horizonte.