O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (53)

Artigo 117, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Fev 2016

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Os imprevisíveis caminhos do conhecimento e da ciência encontram com frequência as pedras e curvas da tentativa e erro e mesmo do acaso.

Exemplo disto foi o caso de Heinrich Diesbach, alemão, pintor e criador de pigmentos, que realizou um marco na indústria de tintas.

Em 1704, Diesbach trabalhava no laboratório do alquimista Johann Konrad Dippel em Berlim e buscava produzir pigmento vermelho.  Usando sulfato de ferro e potassa (carbonato de potássio), misturou-os com sangue animal, que sabemos hoje ser rico em ferro por conta da hemoglobina.

O resultado foi um pálido vermelho inicial, que logo se concentrou em roxo e a seguir num azul profundo.  Sem que o soubesse, o aquecimento havia alterado as proteínas do sangue, que se combinaram à potassa de maneira inesperada: o acréscimo de sulfato ferroso, então conhecido como vitríolo, dera origem a um composto complexo de ferro, o ferrocianeto férrico.

Diesbach acidentalmente havia criado o que veio a chamar de azul da Prússia, também conhecido por azul de ferro ou azul Berlim, e logo visualizou o potencial da criação de compostos.

Embora nenhum deles soubesse o que acontecera, a fórmula foi a primeira tinta sintética moderna e também uma importante descoberta, já que então os pigmentos azuis alternativos não eram muito bons ou não tinham preços acessíveis para uso em larga escala.

Entretanto, os cientistas ainda não sabiam o que fazia os elementos se combinarem em compostos e nem mesmo como controlá-los.

Nesta tentativa, Justus von Liebig (1803-1873, alemão), químico, tornou-se obcecado por combinações explosivas, um interesse despertado ainda na infância por fogos de artifício, que empregavam fulminato de prata, ainda hoje usado nos estalinhos das festas populares.

Em 1825, ao ler um artigo de Friedrich Wöhler (1800-1882, alemão), químico e pedagogo, onde este anunciava um composto chamado cianato de prata, de fórmula AgCNO, em que há partes iguais de prata (Ag), carbono (C), nitrogênio (N) e oxigênio (O), ali descrito como uma substância inofensiva e estável, seu temperamento irascível levou-o a escrever uma furiosa carta a Wöhler.

A razão é que Liebig via ali uma composição idêntica à de seu fulminato de prata.  Para Liebig, em sua carta, a única resposta era que Wöhler estava errado.  Wöhler então o desafiou a produzir cianato de prata para que pudesse testá-lo.

A grande questão era: como podiam dois compostos aparentemente elaborados com as mesmas quantidades de componentes idênticos agirem de maneiras tão diferentes?

As leis da Química então conhecida diziam que só o que importava eram os elementos componentes.  As experiências, porém, logo mostraram que isto não bastava, havia algo mais: os mesmos ingredientes, nas mesmas proporções, podiam produzir compostos diferentes.

Os químicos começavam a perceber que a chave na criação de compostos estava em entender como os elementos se combinavam; o que levava a procurar

compreender os átomos: a maneira como eles estavam ligados era crucial.

Por acaso, Liebig e Wöhler haviam descoberto uma característica fundamental dos elementos que, no futuro distante, viria a explicar como apenas 92 elementos da natureza podem dar origem à extraordinária complexidade do mundo.

Liebig, que trabalhara com Gay-Lussac, e Wöhler, que fora orientado em sua formação por Berzelius, afinal tornaram-se amigos; e assim passaram a colaborar, após resolverem a disputa sobre as substâncias que pareciam ter a mesma composição, mas propriedades distintas: o composto de prata do ácido fulmínico, investigado por Liebig, era explosivo, enquanto que o cianato de prata, composto por Wöhler, não o era.

Estas e outras substâncias, nomeadas isômeros por Berzelius (do grego “isomerês”, “que tem partes iguais”), levaram os químicos à suspeita de que as substâncias são definidas não apenas pelo número e tipo de átomos da molécula, mas também pela disposição entre esses átomos.

O que tornava os compostos diferentes era também a forma como os elementos arranjavam-se entre si: como num brinquedo lego, os mesmos elementos podiam ser arranjados em estruturas moleculares diferentes.  Os mesmos elementos, nas mesmas quantidades, podiam dar origem a substâncias diferentes por meio de estruturas e, por decorrência, propriedades diferentes.

A mais famosa criação de um composto isomérico talvez seja a síntese acidental de ureia por Wöhler em 1828, ao tentar preparar cianato de amônio.  Wöhler depois conseguiu prepará-lo, ao permitir que seus cristais se formassem à temperatura ambiente e não por evaporação da solução.

Entretanto, o feito de reproduzir a natureza em laboratório, que deu início à Química Orgânica, foi para Wöhler uma experiência emocionante, como pode expressar em sua carta a Berzelius: Eu não posso mais, por assim dizer, segurar a minha água química e devo dizer-lhe que posso fazer ureia sem precisar de um rim, seja de homem ou cão; o sal de amônio de ácido ciânico é ureia”.

O resultado mais significativo da colaboração entre Wöhler e Liebig foi sua descoberta de que certos agrupamentos de átomos, em compostos orgânicos, são estáveis: conseguem reter a sua identidade mesmo quando esses compostos são transformados em outros.

Assim, demonstraram que um grupo formado de átomos de carbono (C), hidrogênio (H) e oxigênio (O) pode comportar-se como se fosse um elemento, tomando seu lugar ou sendo trocado em compostos químicos, criando com este fato a base da teoria dos radicais compostos, essencial no desenvolvimento da Química moderna.

Ligado à Biologia e à agricultura, Liebig realizou descobertas que levaram a profundas mudanças na produção de alimentos por meio de fertilizantes sintetizados, consolidadas na conhecida fórmula N-P-K (nitrogênio, fósforo, potássio).

Wöhler, pela síntese da ureia, indiretamente ajudou na refutação da teoria do vitalismo (por ela, os seres vivos seriam distintos do restante da matéria por serem animados e controlados por uma força imaterial ou “energia vital”) e dissipou a ideia de Berzelius de que substâncias orgânicas poderiam ser sintetizadas apenas por seres vivos.  Como cientista e pedagogo, escreveu ainda vários livros de Química Orgânica e Inorgânica.

Desenvolveu um método até hoje utilizado para preparar o fósforo e trabalhou na descoberta de novos elementos: analisando a alumina, base de argila que se supunha conter um metal em combinação com oxigênio, conseguiu êxito onde Humprhy Davy, Hans C. Oersted e Jacob Berzelius haviam malogrado, descobrindo o metal alumínio em 1827.

Realizou também o isolamento dos elementos ítrio, berílio e titânio e fez a observação de que silício pode ser obtido na forma de cristais.

Analisou meteoritos e por muitos anos escreveu a respeito, tendo reunido a melhor coleção privada de rochas e ferros meteóricos então existente.  Notou ainda que algumas rochas meteóricas continham matéria orgânica, fato que abriria um enorme campo de especulações sobre a origem da vida.