O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (58)

Artigo 122, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Jul 2016

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O Congresso de Karlsruhe, o primeiro grande encontro internacional de cientistas dedicados à Química, transcorreu entre os dias 3 e 5 de setembro de 1860, na sede do parlamento de Baden nesta cidade alemã, tendo em vista a discussão e o estabelecimento de algum consenso entre os pesquisadores a respeito da nomenclatura química, das notações usadas e outros temas.

A localização de Karlsruhe, no estado de Baden e próxima à fronteira com a França, facilitava a viagem dos muitos participantes das diferentes nacionalidades.

Como exemplo do grau de dispersão entre os químicos de então, apenas o livro Lehrbuch der Organischen Chemie (Manual de Química Orgânica), de Kekulé, elencava dezenove fórmulas diferentes para representar o ácido acético (base do nosso conhecido vinagre).

Até mesmo a ideia de atomismo continuava posta em dúvida e seus adversários ganhavam força.

Uma importante questão referia-se aos pesos atômicos relativos dos elementos químicos conhecidos: havia vários sistemas em uso, nenhum deles conclusivo.

Entre os sistemas teóricos propostos para a descrição de átomos, moléculas e fórmulas, um dos mais acurados era o elaborado por dois químicos franceses, Charles Gerhardt e Auguste Laurent, que, entretanto, eram marginalizados por questões políticas, já que defendiam ideais socialistas.  Não obstante, contavam com um pequeno grupo de apoiadores, entre eles o trio organizador do Congresso: Kekulé, Wurtz e Weltzien.

Vimos (v. O Processo do Conhecimento, Out 2015) que um destes sistemas assumia o peso atômico do hidrogênio arbitrariamente como 1 e buscava determinar o peso dos demais elementos por comparação; por exemplo, 6 para o carbono, 8 para o oxigênio.

Por decorrência, as incertezas quanto aos pesos atômicos refletiam-se nas composições das substâncias e suas possíveis fórmulas químicas, como no mencionado caso do ácido acético.

Os três dias de trabalho do Congresso não seriam, entretanto, suficientes para que se dissipassem todas as questões básicas, como diferenças entre pesos atômicos e pesos moleculares, embora os conceitos de átomo, molécula e equivalente tenham sido mais bem definidos.  O resultado prático mais substancial residiu na manutenção do modelo de Berzelius para a escrita de fórmulas.

O sucesso do encontro, porém, na ausência de um amplo consenso, viria a se dar em grande medida de uma forma inesperada.

No último dia de debates circularam entre os presentes algumas cópias do trabalho de 1858 do ainda jovem químico italiano Stanislao Cannizzaro (v. artigo anterior), intitulado Sunto di un Corso di Filosofia Chimica (Esboço de um Curso de Filosofia Química), em que este acrescentava seus esclarecimentos à hipótese de Avogadro sobre a teoria atômica, estabelecendo clara distinção entre peso atômico e peso molecular (emprega-se hoje o termo massa e não peso).

A compreensão de que (1) o hidrogênio na natureza não se apresenta como átomo individual e sim como uma molécula composta por dois átomos, aliada à (2) hipótese de Avogadro, que supõe que volumes iguais de gases às mesmas condições de pressão e temperatura têm o mesmo número de moléculas ou átomos e que, portanto, (3) podem ser usados para se calcular os pesos atômicos de seus elementos componentes, era muito esclarecedora.

A explanação de Cannizzaro causou forte impressão sobre os cerca de 140 delegados e conseguiu adeptos imediatos, como o químico alemão Lothar Meyer (apesar de seu ceticismo ácido quanto ao Congresso), que então se empenhava na busca de alguma regularidade ou relação entre os elementos químicos conhecidos.

Uma das consequências, após o Congresso, foi a adoção de um sistema em que o peso atômico do hidrogênio, mantido em 1, trazia na sequência os pesos atômicos agora de 12 para o carbono e de 16 para o oxigênio, reconhecendo que certos elementos, especialmente os gasosos, como hidrogênio, nitrogênio e oxigênio, se apresentam na natureza não como átomos individuais, mas na forma de moléculas diatômicas (formadas por dois átomos).

Entrementes, a mais virtuosa e profunda consequência do encontro ainda estava por vir.

Observando em silêncio e atento a todas as discussões, um jovem de sobrenome Mendeleev, sobrevivente de inúmeras vicissitudes familiares e pessoais, refletia profundamente sobre o que dissera Cannizzaro.