O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (59)

Artigo 123, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Ago 2016

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Os grandes feitos e obras na jornada humana foram (e são) em geral realizados por homens e mulheres cansados e debilitados, até mesmo exaustos e quase vencidos, mas que não desistiram e continuaram a lutar.

Maria Dmitrievna Kornilyeva (1793-1850) foi uma mulher excepcional e as raízes de sua história até mesmo a precediam.

Seu avô, Vasiliy Kornilyev, falecido quando ela tinha apenas 2 anos, fora um bem-sucedido empreendedor; criara em 1749 na cidade de Tobolsk a primeira fábrica de vidro na Sibéria, a extensa e gelada província oriental russa, e havia sido também o primeiro tipógrafo e editor de jornal siberiano em 1780.  Um de seus filhos, Dmitriy Kornilyev (1763-1830), que viria a ser pai de Maria, deu continuidade à atividade editorial e industrial da família.

Distante dali, Pavel Maximovich Sokolov era padre da Igreja Ortodoxa Russa em Tikhomandritcy, aldeia na região de Tver, entre Moscou e São Petersburgo.  Os livros da igreja registram que quatro de seus filhos, Timofey, Natalya, Tatyana e Praskovya, receberam o nome de família Sokolov, enquanto que, de seus outros três filhos, Alexandre foi registado como Tikhomandritckii, Vasiliy como Pokrovskiy e Ivan como Mendeleev.

Ivan Pavlovich Mendeleev (1783-1847) graduou-se no Seminário Ortodoxo em Tver e, em seguida, no Instituto Pedagógico de São Petersburgo, em 1807.  Foi professor em várias escolas, de início em Tobolsk, então capital da Sibéria, e depois em Tambov e Saratov.

Em 1809, Ivan Mendeleev casou-se com Maria Dmitrievna, que adotou o sobrenome Mendeleeva, e em 1820 retornaram a Tobolsk para Ivan servir como diretor do ginásio.

Ivan e Maria formaram uma grande família e tiveram dezessete filhos, sendo que três deles morreram ao nascimento.  As quatorze crianças sobreviventes receberam nomes cristãos e algumas  morreram ainda na infância (Victor, Varvara, Nikolay, Varvara Jr e Ilya) ou jovens: Maria (1811- 1826), Olga (1815-1866), Ekaterina (1816-1901), Appolinaria (1822- 1848), Elizaveta (1823-1852) , Ivan (1826-1862), Maria Jr. (1828- 1911), Pavel (1832-1902) e Dmitriy (1834-1907).

O lar dos Mendeleev em Tobolsk era visitado por intelectuais, incluindo os exilados políticos liberais, os Decembristas, condenados ao trabalho na Sibéria após a revolta anti-tsar de Dezembro de 1825, em São Petersburgo.  A Rússia imperial mantinha-se num isolamento feudal, defasada do ambiente europeu, e seus habitantes, em sua maioria, viviam na condição de servos, como propriedade dos donos de terras.

Havia na casa uma excelente biblioteca e, embora sofressem com as sucessivas mortes de filhos, os Mendeleev viviam relativamente bem.

No entanto, em 1834, ano em que o caçula Dmitriy nascia, Ivan Mendeleev ficou cego, devido a uma catarata, e, apesar da bem-sucedida cirurgia, teve que se aposentar com uma pensão insuficiente.

A partir daí, buscando prover a família, Maria dedicou-se a reativar a fábrica de vidro, ora de seu irmão, que ficava em Aremziansk, a 20 km ao norte dali.

Edificou uma igreja de madeira, criou uma escola para a educação dos filhos e do bem-estar dos que ali trabalhavam e desta maneira batalhou sem descanso

pelos 14 anos seguintes, desdobrando-se entre família, operários e fábrica.

Dmitriy Ivanovich Mendeleev iniciou o ginásio em Tobolsk aos 7 anos, um ano antes do permitido, e teve que estudar por dois anos na primeira série.  Apesar disto, formou-se cedo, aos 15 anos, o que também não era aceito; assim, em Julho de 1849, para evitar possíveis problemas administrativos, os professores o registraram como tendo 16 anos em seu certificado.

Dmitriy foi bem em ciências naturais e matemática, mas não tão bem em línguas, o que pode ser entendido pelo fato de que eram ensinadas línguas mortas, como latim e grego antigos, numa tentativa de valoração dos ideais clássicos.  Seu evidente interesse era outro.

Por sorte, durante esse tempo Dmitriy tivera a companhia de seu cunhado Bessagrin, um dos decembristas exilados, que, além de lhe reforçar os ideais libertários praticados por sua mãe, instigava seu profundo interesse pela ciência.  Ademais, sua convivência com o trabalho da fábrica, sua arte e sua química o animavam.

Mas o ano de 1847 havia iniciado uma sequência de infortúnios para a família, com o falecimento de Ivan, seu pai, por tuberculose, seguido pela morte de sua irmã Appolinaria em 1848.

Ainda em 1848, um incêndio destruiu a fábrica de vidros por completo.  Maria Mendeleeva e sua família encontraram a miséria.

No ano seguinte, 1849, com a graduação precoce de Dmitriy, Maria tomou uma resoluta decisão.  Com umas poucas economias, que diligentemente reservara à educação, e certa de que seu caçula detinha um talento excepcional, decidiu levá-lo a estudar em Moscou, onde seu rico irmão Vasiliy residia, e partiu no verão siberiano com Dmitriy e Liza (Elizaveta), seus únicos filhos ainda dela dependentes.

Empreenderam uma longa e extenuante viagem da Sibéria até Moscou, mais de 2.500 km percorridos em carroças, charretes, trens e até mesmo a pé.

Ali chegando, enfrentaram uma intransponível barreira burocrática: o ingresso de Dmitriy na universidade foi recusado.

Havia um sistema de cotas para a admissão de alunos das províncias, mas não havia cotas ainda para a Sibéria; e outras instituições de ensino superior por eles procuradas não reconheciam as qualificações siberianas.  A regulamentação para graduandos permitia que os residentes de Tobolsk só ingressassem na universidade mais próxima de sua região, localizada em Kazan.

Restava-lhes uma última tentativa; e assim Maria, Liza e Dmitriy lançaram-se em mais uma viagem, esta de 650 km, em direção a São Petersburgo.

Na então capital do Império, o problema repetiu-se.

Sua cansativa e frustrada peregrinação foi interrompida, entretanto, por obra de um acaso: Maria descobriu que o professor Chizhov, diretor do Instituto Pedagógico Central, principal instituição formadora de professores secundaristas, era um antigo colega e amigo de Ivan, seu marido, que ali se graduara.

Driblando a burocracia, a amizade, como a força das águas, encontra seus próprios caminhos.

Assim, no verão de 1850, foi permitido a Dmitriy fazer os testes de admissão, em que foi aprovado, embora não com destaque, mas pontuando o suficiente para receber uma pequena bolsa de estudos, com residência no dormitório.  Como retribuição, os bolsistas deviam comprometer-se a ensinar em escolas de ensino médio após a graduação, com dois anos de serviço para cada ano de educação recebido.

Maria Dmitrievna Mendeleeva, agora com 57 anos,  esgotada e precocemente envelhecida, mas feliz ao ver que Dmitriy encontrara acolhida para seu talento, finalmente cedeu terreno à exaustão prolongada e a tuberculose a alcançou.

Em Setembro de 1850, dez semanas após o exame do jovem Dmitriy no Instituto Pedagógico, suas últimas palavras ao filho ainda revelavam seu vigor incansável: “Abstenha-se de ilusões, insista no trabalho, não nas palavras.  Busque pacientemente a verdade divina e científica”.

Ele jamais se esqueceria disto.