O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (60)

Artigo 124, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Set 2016

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Embora tenha recebido a acolhida salvadora do Instituto Pedagógico Central, verdadeiro oásis a aquela altura, os infortúnios que cercavam Dmitriy Ivanovich Mendeleev pareciam não ter fim.

Poucos meses após a morte de Maria Dmitrievna Mendeleeva, sua mãe, seu tio Vasiliy faleceu em Moscou, em 1851.  Mais alguns meses e sua jovem irmã Liza, companheira na extenuante jornada desde a Sibéria, foi abatida pela tuberculose, vindo a falecer em 1852.

Nem um ano após, ele mesmo viu-se gravemente enfermo e, por conta de uma hemorragia na garganta, os médicos do hospital do Instituto suspeitaram fortemente de tuberculose, prevendo que Dmitriy não resistiria por muito tempo.

Ele nunca havia sido uma criança perfeitamente saudável, porém, em alguns meses, conseguiu recuperar-se, para surpresa geral e aplauso de seus colegas.

Mesmo hospitalizado, nunca se aferrou ao leito, embora ali ficasse por longos períodos.  Com frequência ia aos laboratórios trabalhar em seus experimentos originais e retornava para, ali na cama, registrá-los e escrever artigos que enviava às revistas científicas.

Aos 20 anos já tinha alguns trabalhos publicados, graças ao seu talento e à excelência do ensino no Instituto Pedagógico que, sediado junto à Universidade de São Petersburgo, tinha como professores vários docentes desta, como Heinrich Lenz (Física) e Alexander Voskresensky (Química), este um antigo discípulo de Justus von Liebig e conhecido na ciência como 'avô da química russa', que se tornaria seu amigo.

À semelhança de sua experiência anterior no ensino médio, nos dois anos iniciais Dmitriy Mendeleev permaneceu como estudante do primeiro ano, obtendo notas modestas e colocações fracas.  Entretanto, apesar dos problemas de saúde, esforçou-se muito e em 1854 obteve o 7º lugar na classificação geral, formando-se professor secundário em 1855 com medalha de ouro por excelência.

Estudante, já se destacara por revelar sua capacidade em estabelecer correlações entre conhecimentos fragmentados, talento que lhe garantia originalidade nos artigos científicos, mas sobretudo desenvolvia aptidão para perceber padrões em meio a materiais dispersos.

Impressionados com Mendeleev, os diretores desejavam mantê-lo no Instituto a fim de que se preparasse para o grau de magíster (mestre); mas aparentemente ele preferiu seguir conselhos médicos de mudar-se para um clima mais ameno, ao sul, e sua designação para um cargo docente em Odessa, no ginásio do famoso Liceu Richelieu, com uma excelente biblioteca, pareceu-lhe uma deferência do Ministério da Educação.

Na realidade, foi enviado à pequena cidade de Simferopol, na Crimeia em guerra, que ficava ao lado da então capital Sevastopol, ora sitiada.

Em 25 de Agosto de 1855, encontrou a cidade transformada num grande acampamento militar e cheia de hospitais.  O ginásio estava fechado há tempos.  Não havia emprego, não havia pagamento e Mendeleev estava sem recursos.

Se a amizade pode operar milagres, os desafetos podem trazer o inferno.  Mesmo sendo paciente e perseverante, Mendeleev também tinha pavio curto e um dia havia discutido com um funcionário do Ministério, que aguardou a hora da forra e então manobrou para despachá-lo a Simferopol.

Contudo, o acaso mais uma vez o socorreu.

Ali, em suas perambulações, ele conheceu o famoso médico-cirurgião, cientista e pedagogo Nicolay Pirogov,

que o examinou e contrariou qualquer diagnóstico anterior de tuberculose.  Assim, Mendeleev conseguiu mudar-se para Odessa dois meses depois.

Em seu meio ano em Odessa, conciliou o ensino de ciências e matemática com a preparação da tese de mestre sobre isomorfismo e volumes específicos; e solicitou por carta uma ajuda de seus antigos mentores em São Petersburgo com relação a sua habilitação e possivelmente seus estudos no exterior.  Com uma resposta positiva, em Maio de 1856 retornou a São Petersburgo.

Prosseguindo em sua preparação e em suas pesquisas, Mendeleev, por dificuldades do Instituto Pedagógico, que em breve seria desativado, viu-se obrigado a requerer seu grau de mestre ao Conselho da Universidade Imperial de São Petersburgo.  Aprovado em Setembro, logo preparou uma segunda tese, necessária para um cargo docente, aprovada já em Outubro.

Cedendo à sua admirável atividade, aos 22 anos as portas para o magistério abriram-se para ele, embora na forma de um cargo de docente privado na Universidade, ou seja, um professor não contratado cuja remuneração dependia de contribuições dos alunos.

Já em 1857 começou a dar palestras sobre história da química e depois sobre química orgânica, além de supervisionar estudantes da graduação em seus trabalhos de laboratório e reforçar seus ganhos dando aulas particulares e escrevendo artigos de divulgação de ciências para o jornal do Ministério da Educação.

Entretanto ele almejava ir muito além, em direção a pesquisas avançadas, e, ao final de 1858, a Universidade decidiu-se enfim a enviá-lo ao exterior, por dois anos, para aperfeiçoamento.  Assim, partiu mais uma vez em Abril de 1859, ano que em Charles Darwin afinal publicaria sua revolucionária obra Sobre a Origem das Espécies.

Por dois meses Mendeleev visitou universidades de várias cidades e fixou-se primeiro em Paris, a conselho do amigo Alexander Borodin, químico e compositor que viria a ser famoso por sua ópera Príncipe Igor e outras obras, além de conquistas em química.

Na capital francesa, que era o centro mundial da Química, estudou com Henri Regnault, experimentalista celebrado, conheceu Marcellin Berthelot, Adolphe Wurtz e Jean Baptiste Dumas, todos eles químicos de vanguarda, e mais tarde encontrou-se com Liebig em Munique, Alemanha, que entusiasmado recordou-se de Voskresensky.

Decidiu-se afinal por trabalhar junto a professores também notáveis na Universidade de Heidelberg, cidade que o atraiu ainda pela grande comunidade russa, que em 1860 compunha cerca de 10% de seus estudantes.

Começou com as aulas de Gustav Kirchhoff e logo passou para Robert Bunsen (ambos brilhavam com sua recém-criada espectroscopia) e também Emil Erlenmeyer, enquanto se cercava de amigos como Borodin, Zinin (fisiologista) e Sechenov (químico).

Seu temperamento, porém, gerava dificuldades com Bunsen.  Isto e a insatisfação com a ausência de alguns equipamentos de precisão necessários a suas pesquisas acabaram por fazê-lo afastar-se e criar um improvisado laboratório em seu apartamento.  Comprou instrumentos de mestres em Bonn e Paris e até mesmo criou um, utilizado na medição da massa volumétrica de sólidos ou líquidos, o chamado ‘picnômetro de Mendeleev’.

A pesquisa com medição de volumes específicos (pesos moleculares divididos pelas densidades) para uma série de líquidos levou-o à descoberta do fenômeno a que chamou de ‘ponto absoluto de ebulição’, hoje conhecido como temperatura crítica.  Em resumo, sabendo que um gás se liquefaz quando a temperatura diminui e a pressão aumenta (o que permite a produção dos refrigerantes gasosos com dióxido de carbono), ele descobriu que todo gás tem uma temperatura a partir da qual não pode mais ser liquefeito sob qualquer pressão.

Assim corriam os dias em meados de 1860, quando ele e alguns amigos receberam um convite instigante: programava-se para o início de Setembro, na cidade de Karlsruhe, o primeiro grande encontro dos principais pesquisadores químicos do mundo, com o fim de discutir e procurar estabelecer alguns padrões.

Era uma oportunidade imperdível.