O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (62)

Artigo 126, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Nov 2016

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Em 1863, um ano antes de completar 30 anos, Dmitriy Mendeleev foi convidado a assessorar um trabalho do Comitê Técnico Especial, recém-criado pelo Ministério das Finanças da Rússia.

O Ministério havia decidido, no início dos anos 1860, reavaliar seu sistema de impostos sobre consumo para tributar a produção de álcool, tendo percebido então a necessidade de novos métodos e de dispositivos mais precisos para medir a concentração de soluções de etanol (álcool etílico).  Como editor e autor do recente capítulo sobre Alcoolometria (v. artigo anterior) e ainda criador de um novo picnômetro, o jovem e talentoso Mendeleev tornava-se a escolha recomendada.

Com o projeto que apresentou, de sucessivas destilações em cuba, obteve etanol extremamente purificado.  Estudou exaustivamente a variação de volume e densidade versus temperatura e relação água/etanol, criando daí uma exata, e complexa, fórmula a ser utilizada em outras calibrações na indústria.  Curiosamente, no apoio recebido do Ministério, seu salário incluía dois barris de álcool.

Seu maior ganho, entretanto, residia no fato de que esta pesquisa juntava-se a seu interesse original a respeito de problemas fundamentais da físico-química de líquidos e soluções.

Os dados que obteve, bastante precisos, logo o levaram a perceber a formação de compostos moleculares segundo a evidente proporção molar entre os componentes; como, por exemplo, com a razão molar C2H5OH : H2O (ou seja, a proporção entre etanol e água) sendo 1:3, 3:1 e até 1:12.

Isto se tornou o tema de sua tese de doutorado, denominada Sobre os Compostos de Álcool e Água, pelo que alcançou, ao final de Janeiro de 1865, seu PhD pela Universidade de São Petersburgo.  Ali recebeu, a seguir, a posição de professor extraordinário e em Dezembro viria a ser nomeado Professor de Química Técnica.

Essa estabilidade, aliada ao barateamento das terras em decorrência da libertação dos servos (v. artigo anterior), permitiu-lhe comprar uma casa na aldeia de Boblovo, a 12 km da cidade de Klin, região de Moscou, onde sua família começou a passar as temporadas de verão.  Ali edificou uma nova casa e um laboratório, desfrutando tanto deste como de seu jardim, onde seu interesse pela agricultura pode desabrochar.

Entusiasta das ideias de agroquímicos modernos, em especial as de Justus von Liebig (v. artigos de Fev e Set 2016), que afirmara usar fosforitos e outros fertilizantes minerais na agricultura, Mendeleev decidiu-se a testá-las.

De início, percorreu os campos experimentais de Boblovo e uma fazenda.  Depois palestrou na Sociedade Imperial Economia Livre sobre temas agrícolas e dela tornou-se membro, obtendo apoio da Sociedade para suas experiências em Boblovo.  Em dois anos, conseguiu melhorar a qualidade de seus solos e o rendimento das culturas.

A exemplo do que sua mãe fizera, implantou um programa humanitário para os camponeses em sua propriedade, junto aos novos métodos de agricultura.  Seu sucesso despertou o interesse dos camponeses vizinhos, que passaram a visitá-lo e a desfrutar de seu conhecimento; e logo as cooperativas próximas estavam seguindo seus conselhos para a fabricação de queijos e melhoria das plantações.

Suas aulas na Universidade eram igualmente um sucesso inspirador junto aos estudantes, que lotavam o salão onde Mendeleev ilustrava suas explanações químicas com um conhecimento enciclopédico, estabelecendo com naturalidade conexões entre áreas diversas.

Em meio a seus entusiasmados alunos estava Piotr Kropotkin, príncipe da casa real de Rurik, que futuramente abdicaria de seu título e seria um dos mais famosos líderes anarquistas.  Sobre Mendeleev, Kropotkin recordava: “O salão estava sempre repleto com algo em torno de 200 estudantes, muitos dos quais, suspeito, não podiam acompanhar Mendeleev, mas, para os poucos de nós que podíamos, era um estimulante para o intelecto e uma lição de pensamento científico que deve ter deixado traços profundos em seu desenvolvimento, como deixou no meu.”

Reveladora de um estado de época, em que a Química era vista mais como um aglomerado de técnicas e fatos dissociados, a observação de outro aluno diagnosticava: “Graças a Mendeleev, comecei a perceber que a química era realmente uma ciência.”

O ímpeto criativo de Mendeleev trazia em sua esteira novidades e mudanças.  Em Agosto de 1866, embora lá viesse a manter suas palestras de química orgânica até 1872, retirou-se do cargo de professor do Instituto Tecnológico; e no final do ano sua família mudou-se para os apartamentos comunais no campus da Universidade.

Já em 1867, seu amigo e protetor Voskresensky, devido à transferência para Kharkov, desligou-se de todos os cargos na Universidade, oferecendo a Mendeleev sua posição de professor de Química Pura.  Decorrências desta, alterações outras foram produzidas e, até o final do ano, A. Butlerov, de Kazan, recebeu o lugar de Mendeleev, vindo N. Menshutkin, como professor extraordinário, ali completar um novo trio de excelência.

Diferentemente de alemães ou ingleses, que já haviam criado suas instituições químicas, até esta época os químicos russos não possuíam vínculo algum com qualquer associação oficial; nem mesmo tinham um jornal ou periódico, apenas se reuniam ou comunicavam-se informalmente.

Também aí contribuiu Mendeleev intensamente pela constituição da Sociedade Russa de Química, tendo pessoalmente escrito seu regimento interno.  Fundada em Outubro de 1868 e reconhecida pelo governo, a Sociedade logo criou seu jornal.

De Voskresensky, Mendeleev havia herdado também o encargo de ministrar o curso de Química Inorgânica, tema relativamente novo mesmo para ele, que até aí se dedicara à Química Orgânica.  Surpreendeu-se então mais uma vez com a falta de manuais atualizados para os estudantes, decidindo-se, como antes, a escrever o seu.

Com seu profundo princípio intelectual de síntese a guiá-lo, mergulhou em sua composição, pois para ele “o edifício da ciência requer não somente material, mas também um projeto, e necessita do trabalho de preparar os materiais, reuni-los, elaborar as plantas e as proporções simétricas das várias partes.  ...Conceber, compreender e apreender a simetria total do edifício, incluindo suas porções inacabadas, é equivalente a experimentar aquele prazer só transmitido pelas formas mais elevadas de beleza e verdade.

O primeiro dos dois volumes projetados de Os Princípios da Química, que viria a ser sua obra-prima, já estava pronto e publicado no início de 1869; e logo escreveu os dois capítulos iniciais do segundo.

Mendeleev havia iniciado o trabalho com um plano claro, onde os elementos e seus compostos seriam tratados e agrupados segundo propriedades similares, um após outro: no primeiro volume, estavam os elementos organógenos comuns, hidrogênio (H), oxigênio (O), nitrogênio (N), carbono (C) e suas combinações, essenciais a toda a vida vegetal e animal; e, a seguir, os halogênios flúor (F), cloro (Cl), bromo (Br) e iodo (I).

Já no segundo tomo, abordaria os metais alcalinos (estes reagiam facilmente com a água, formando álcalis, hidróxidos), que lhe tomaram os dois primeiros capítulos, onde se encontravam o sódio (Na) e o potássio (K), e depois viriam os alcalinos terrosos (seus óxidos eram então chamados de 'terras') berílio (Be), magnésio (Mg), cálcio (Ca) etc.

A esta altura, entretanto, defrontou uma grande dúvida, de cuja resolução dependia o seguimento do livro: onde colocar, como ordenar os elementos mais pesados?

E, afinal, como organizar todos os 63 elementos já conhecidos?  Haveria mesmo uma lógica oculta, como sugeria há tempos a ordenação dos elementos segundo seu peso atômico?

Mendeleev encarava, enfim e sem escapatória, as questões que há décadas atormentavam gerações dos melhores químicos.