O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (63)

Artigo 127, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Jan 2017

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A criação do conhecimento é um esforço coletivo; ninguém o constrói sozinho. Ninguém sabe tudo, todo mundo sabe alguma coisa: esta é a essência da árvore do conhecimento.

Ao iniciar o segundo volume de Os Princípios da Química, sua obra-prima, Dmitriy Mendeleev, já com dois capítulos escritos, deteve-se diante da questão que desafiava a ciência há gerações. Seria possível organizar os elementos químicos de maneira cientificamente coerente, de acordo com alguma regra ainda inexplorada?

Somente 14 elementos eram conhecidos antes de 1701, e no decorrer do século 18 mais 19 deles foram descobertos. Já no século 19, apenas entre 1801 e 1849, mais 26 vieram juntar-se à lista (e até 1900 mais 23 seriam descobertos).

No momento em que Mendeleev escrevia, início de 1869, havia 63 elementos químicos conhecidos. Como organizá-los e sob qual critério?

Os antecedentes deste empenho eram múltiplos, variados e antigos.

John Dalton, pai da moderna teoria atômica (v. artigo de Ago 2015), havia em 1803 publicado uma lista, ordenada exclusivamente por peso atômico, com 20 elementos, sem aventar qualquer relação entre eles.

Em 1817 Johann Döbereiner notara certas regularidades entre alguns elementos, que denominou tríades (grupo de três elementos), publicando em 1829 (v. artigo de Abr 2016) uma classificação inicial. Numa tríade, p. ex. Cl (cloro), Br (bromo), I (iodo), além das propriedades químicas serem semelhantes, o peso atômico do elemento central era aproximadamente a média dos outros dois.

Antoine J. Balard (1802-1876, francês), que em 1826 descobrira o bromo, havia previsto que este formaria uma tríade com o cloro e o iodo.

A ideia de tríade prosseguiu com Leopold Gmelin (1788-1853, alemão), que em 1843 anunciou, em seu próprio livro de química, mais algumas delas, aprofundando os estudos de Döbereiner e entrevendo outras relações entre pesos atômicos.

Esses estudos foram levados adiante por Peter Kremers, alemão, que em seus trabalhos de 1852 e 1856 sugeriu que alguns elementos poderiam pertencer a duas tríades, desde que a segunda fosse perpendicular à primeira. Ao considerar uma relação horizontal e assim comparar elementos em duas direções, abriu uma nova perspectiva.

De certa forma, Kremers adotava a ideia de Germain I. Hess (1802-1850, russo-suíço), que já em 1849, em seu livro Fundamentos da Química Pura, introduzira o conceito de ‘família’ de elementos químicos, descrevendo quatro grupos de não metais com propriedades químicas semelhantes: F, Cl, Br, I; O, S, Se, Te; B, C, Si; N, P, As. Hess então alertara, profético: “Essa classificação, todavia, está longe de ser natural; porém, unindo-se elementos e grupos muito parecidos, ao ir se ampliando nossos conhecimentos, ela poderá ser aperfeiçoada”.

Em 1857, Ernst Lenssen, alemão, ainda insistia na ideia de tríades, tendo publicado um artigo em que considerava ter descoberto 20 novas delas, que arranjariam 58 elementos conhecidos, algo um tanto forçado, pois muitos elementos não se encaixavam bem nessa proposta.

Nesse mesmo ano, William Odling (1829-1921, inglês) publicava uma tabela com 49 elementos arranjados em 13 grupos, muitos deles tríades, segundo o peso atômico relativo. Em 1864, com 57 elementos distribuídos em 17 grupos de acordo com suas valências, Odling anunciou um sistema de classificação dos elementos unindo-os em grupos com propriedades análogas (propriedades estas dos seus compostos) e seguindo também a ordem crescente de seus pesos atômicos.

Entretanto, outros pesquisadores experimentavam caminho diverso.

Jean-Baptiste Dumas (1800-1884, francês) havia se afastado da ideia de tríades, tendo, em 1851, focalizado o estudo de um conjunto de equações matemáticas bastante especulativas, trabalho publicado em 1858, que procurava explicar o aumento do peso atômico entre vários grupos de elementos quimicamente análogos.

Ainda em 1858, um trabalho de Max Joseph Pettenkofer (1818-1901, alemão), também abordava uma possível

relação numérica entre pesos atômicos de elementos quimicamente semelhantes.

Pesquisa similar era conduzida por Josiah Parsons Cooke (1827-1894, estadunidense), que em 1854 publicara artigo sobre uma relação numérica entre pesos atômicos em que era possível perceber, ainda que de maneira vaga e imperfeita, uma antecipação de um sistema periódico (ou seja, uma estrutura repetitiva) de classificação.

Essa linha de pesquisa era reforçada pelo trabalho de Adolph Strecker (1822-1871, alemão), que em 1859 evidenciara as semelhanças químicas entre o Fe, o Co e o Ni, naquela que é hoje conhecida como a primeira fileira dos metais de transição.

Mas um significativo passo foi então dado pelo geólogo Alexandre De Chancourtois (1820-1886, francês) em 1862: usando os novos valores de pesos atômicos obtidos por Cannizzaro em 1858, e apresentados no Congresso de Karlsruhe em 1860 (v. artigo de Jul 2016), ele dispôs todos os elementos conhecidos num arranjo tridimensional, segundo uma espiral crescente.

Numa classificação que ficou conhecida como Parafuso Telúrico (o elemento telúrio – Te – estava próximo ao centro do diagrama), pela primeira vez alguém reconhecia uma periodicidade (repetição a intervalos regulares) nas propriedades químicas dos elementos.

Era um sistema complexo, que ordenava os elementos sobre um cilindro vertical, conforme o aumento do peso atômico, ao longo de uma espiral com 45° de inclinação em relação à base. A circunferência do cilindro era dividida em 16 seções, de tal forma que, ao cabo de uma volta, encontrava-se o elemento oxigênio (O) sobre a linha. Na segunda volta, o enxofre (S) surgia acima do oxigênio e assim por diante com selênio, telúrio etc: os elementos verticalmente alinhados tendiam a apresentar propriedades semelhantes.

Chancourtois submeteu seu trabalho à Academia Francesa de Ciências, que o publicou; porém, para desgosto do pesquisador, sem o diagrama que teria em muito facilitado sua compreensão. Além disto, pelo fato de ter ali incluído íons, compostos e termos geológicos de parco interesse dos químicos de então, seu artigo obteve pouca compreensão e quase nenhuma divulgação.

O caminho aberto por Chancourtois teria que aguardar pela atenção de uma mente como a de Mendeleev.