Quando iniciamos esta
terceira
jornada, citamos uma das
reflexões do
Talmude,
livro
sagrado da
religião
judaica,
que aponta
para o
fato de
que “não
vemos as
coisas
como
elas
são;
nós as vemos
como somos” (v.
artigo Mai 2015).
De
certa
forma,
isto
poderia
ser ilustrado
pela
lembrança do
que
já havíamos
dito, ao
final da
primeira
jornada (v.
artigo
Conclusões: O
Olhar, Abr 2009),
sobre a
chegada de Cristóvão Colombo ao “novo
mundo”, as Américas: “alguns
dos
povos
indígenas encontrados
não foram
capazes de dar-se
conta da
aproximação das
naus
com os visitantes,
mesmo estando nas
praias
para
onde
estes se dirigiram e aportaram. As
caravelas e
seus
ocupantes
simplesmente
não faziam
parte do
mundo
conhecido
pelos
indígenas,
não existiam
em
sua
cultura,
não cabiam no
seu
imaginário.
Logo,
não existiam ao
seu
olhar”.
As
pinceladas
que
aqui vimos tramando, na
reconstrução do
conhecimento
sobre a
natureza da
matéria
que constitui o
universo
conhecido, revelaram
que
até Lavoisier, ao
final do
século 18, e
mesmo
pouco
depois dele,
este
esforço de
físicos e
químicos concentrava-se na
identificação e classificação das
substâncias compostas,
um
trabalho voltado à
síntese.
Já na
primeira
metade do
século 19, havia se consolidado a
busca
pela
identificação das
substâncias
simples, os
elementos, numa
atividade
mais voltada à
análise.
Com
mais de meia
centena de
elementos
conhecidos, a
busca
intensa
por uma classificação
geral,
que revelasse a
organização e a
estrutura
íntima da
matéria, trazendo
então alguma previsibilidade,
era uma
imposição
lógica.
Percebamos
ou
não,
em
geral a
construção do
conhecimento
sobre
algo se dá
por comparação, e sucessivas comparações,
para
que
em
sua
descrição sejam consideradas
semelhanças
ou
oposições a
outros
objetos de
estudo, levando às classificações, o
arranjo
geral
em
que os
objetos se encaixam e se ordenam. Fazemos
isto o
tempo
todo.
O
desenvolvimento do
conhecimento
químico
não
era
exceção a esta
regra e o
francês Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo
da
ciência, o analisa
com
clareza
em
sua
obra O
Pluralismo
Coerente da
Química
Moderna, editada
em 1929.
Nela, Bachelard indica
que o
pioneiro filósofo da
ciência Auguste Comte (1798-1857,
francês; v.
artigos de
Mar 2010, Jun 2012, Ago 2014)
já registrara
que a
arte das classificações
não oferecia à
física
nenhum
recurso de
real
importância,
mas à
química
sim.
Para Comte, “a
química,
por
sua
natureza, tem a
esse
respeito
condições
bem
diferentes,
que se aproximam de
certa
forma das
que
só a
fisiologia pode
manifestar
completamente.
Basta
assinalar
como
índice
geral a
existência das
famílias
naturais,
que
hoje
em
química é admitida unanimemente
por
todos os
pensadores,
embora a classificação
correspondente a
este
princípio esteja
ainda
longe de
ser estabelecida
convenientemente. A possibilidade
reconhecida de
semelhante classificação deve
levar necessariamente à do
método
comparativo... a
construção de
um
sistema
natural de classificação
química,
hoje
tão desejado, é
impossível
sem uma
ampla
aplicação da
arte
comparativa...”
Bachelard observa a
dialética desta
etapa, a
aparente
transição da
síntese
para a
análise,
onde “tenta-se
compreender o
composto
pelo
simples,
mas é
para
imediatamente
caracterizar o
simples
por
seu
papel na
síntese dos
corpos
compostos”; e enaltece a
importância de Auguste Laurent (1807-1853) e
Charles Gerhardt (1816-1856),
já
aqui citados (v.
artigo Jul 2016),
para
quem “uma
ciência
química
que se
limite à
mera
descrição dos
fenômenos
não está cumprindo
seu
papel. Laurent
quer
que os
fatos confirmem as ideias,
mas é
preciso
que as ideias
imediatamente façam
prever
novos
fatos... a
análise de uma
substância
particular
não
basta
para conhecê-la
com
exatidão.
Só a conheceremos de
verdade
quando
lhe pudermos
atribuir
um
lugar
exato no
plano
orgânico da
experiência
total,
quando tivermos fixado
sua
gênese e
suas
qualidades
genéticas.”
Seria
absoluta, a
diversidade dos
elementos?
Era uma
questão
lógica
que se elevava. Cabia
indagar se, a
partir de
sua
gênese, seriam os
elementos
imutáveis
em
sua
natureza e
comportamento.
Em outras
palavras, haveria
infinitos
elementos
químicos
possíveis?
A
mera
ordenação
crescente
por
peso atômico,
linear, dos
então
cerca de 60
elementos
conhecidos sugeria uma possibilidade
perturbadora: se o
peso atômico
era |
importante na
definição da
natureza e
comportamento do
elemento,
quantos
elementos poderiam
existir
entre,
por
exemplo, o
oxigênio (O) e o
flúor (F), de
pesos atômicos 16 e 19?
Em
tese,
infinitos?
Isto tornaria
impossível
qualquer classificação.
Bachelard prossegue,
lembrando
que
então “as
substâncias refratárias à
análise [os
elementos] apresentam-se
agora
como os
elementos de
um
pluralismo
bem
definido experimentalmente [em
laboratório]. Cumpre
então
enunciar as
propriedades distintivas dos
diferentes
elementos desse
pluralismo. O
problema da
diversidade tornou-se, no
início do
século 19,
um
problema da classificação das
substâncias
elementares.
Mas
onde
encontrar o
princípio [critério
organizador] da classificação? ...A
maioria dos
químicos escolheu,
para
classificar os
elementos,
um
tipo
particular de
reação [Fourcroy, acidificação dos
óxidos; Thénard,
afinidade dos
metais
com o
oxigênio; Berzelius,
disposição
linear
segundo
característica
elétrica]... O
princípio seguido
por
Ampère (1816) é
mais
ambicioso
porque pretende
traçar
um
quadro
que
leve
em
conta o
conjunto das
propriedades dos
elementos.”
Dumas,
em 1828, realizara uma
contribuição
importante
com o
conceito de “famílias
naturais”;
mas as
famílias, isoladas,
pouco esclareciam.
Evidenciava-se a
necessidade de se
levar
em
conta
não
apenas as
características
essenciais de
cada
elemento,
mas
também as dos
compostos
que
eles formam,
para
assim
estabelecer
sua
hierarquização e classificação.
Bachelard conclui
então
que, “considerados isoladamente, os
pesos atômicos
só fornecem uma classificação
linear. É acrescentando a ideia de
valência (ou,
de
modo
mais
obscuro, a ideia de
família)
que se terá de
certo
modo uma
linha de
referência
capaz de
substituir
um
alinhamento
por
um
quadro.
Esquema
novo
que se revelará,
para
apreciar as verdadeiras
relações das
substâncias
simples,
tão
rico de
informações
quanto o
quadro de Gerhardt
para as
substâncias compostas.
Com as ideias de Mendeleev, a
classificação das
substâncias
ganha
assim
um
novo
alcance.”
Como
aqui
já registramos (v.
artigo Jun 2016), “desde
um
século
antes, as
pesquisas progrediam
com
rapidez, trazendo a
descoberta de
muitos
novos
elementos
químicos e
relações de
combinações
entre
eles (teorias,
leis),
como as
proporções
constantes (Proust),
proporções múltiplas e
teoria atômica (Dalton),
reações dos gases (Gay-Lussac) e
mesmo a
teoria molecular (Avogadro) e o
conceito de
valência (Couper e Kekulé)”.
Odling (v.
artigo Jan 2017)
já havia
levado
em
conta as
valências e a
ordenação
por
peso atômico,
mas os
grupos seguiam as
valências,
não o
conceito de
família;
agarrado
ainda à ideia de
tríades,
não alcançara dali
extrair uma
regra
geral.
De uma
forma
ou de
outra, os
que antecederam Mendeleev nesta
empreitada deixaram-se
limitar
por se apegarem
em
demasia a
um
conceito
central, a
que subordinavam as ideias e as
descobertas
seguintes.
Mendeleev,
embora emprestando
relevância a
três deles (ordenação
por
peso atômico,
valências,
famílias) procurava
abarcar o
todo.
Para
além da
descoberta,
isolamento e
descrição de
um
elemento, Dmitriy Mendeleev estava
mais interessado na
compreensão do
quadro
geral, das
relações
possíveis
entre os
elementos
conhecidos, na
busca de uma
lógica
plausível
para
sua
natureza e
seu
comportamento. |