O Rei Está Nu: o Processo do Conhecimento - método científico (67)

Artigo 131, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Mai 2017

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Dormimos para que nosso cérebro descanse e se recupere do esforço realizado durante o estado de vigília, pois a privação prolongada do sono pode nos levar até mesmo à morteEntretanto, ele não se “desliga”: longe do que pode supor o senso comum, nosso cérebro continua ativo em outro patamar, nosso inconsciente pode então se manifestar naquilo que chamamos de sonhos e, livre das amarras do consciente, pode até mesmo resolver problemas.

Aconteceu com Mendeleev, neste caso da sua tabela periódica dos elementos químicos.

O mesmo havia se dado com August Kekulé durante suas pesquisas sobre a tetravalência do carbono e sua capacidade de formar cadeias, quando então, em 1865, descobriu a fórmula hexagonal do benzeno, em que seis átomos de carbono formavam um anel, alternando ligações simples e duplas: “Eu estava sentado à mesa escrevendo meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro lugar. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente dos meus olhos. Desta vez os grupos menores mantinham-se modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Uma das serpentes tinha abocanhado a própria cauda e a forma que fazia rodopiava caçoante diante dos meus olhos. Como se tivesse se produzido um relâmpago, acordei... e passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade.”

Após sua proposição inicial, em 1869, Mendeleev continuou a pesquisar e fundamentar seus conceitos para a elaboração e refinamento da Tabela.  Duas décadas depois, na conhecida Palestra Faraday, ele exporia novamente suas conclusões e rememoraria os antecedentes:

A. Strecker, em seu trabalhoTeorias e experiências para determinar as massas atômicas dos elementos’ (Braunschweig, 1859), depois de resumir os dados relativos ao assunto, e apontando a notável série de equivalentes
Cr=26.2  Mn=27.6  Fe=28  N=29  Co=30
Cu=31.7  Zn=32.5
observa
que: ‘É pouco provável que todas as relações acima mencionadas entre os pesos atômicos (ou equivalentes) de elementos quimicamente análogos sejam meramente acidentais. Devemos, no entanto, deixar para o futuro a descoberta da lei das relações que aparece nestas figuras
’.

Nessas tentativas de arranjo e em tais visões devem ser reconhecidos os verdadeiros precursores da lei periódica. O terreno foi preparado entre 1860 e 1870 e não foi expresso de uma forma determinada antes do final da década; isso pode, suponho, ser atribuído ao fato de que apenas elementos análogos foram comparados.

A idéia de procurar uma relação entre os pesos atômicos de todos os elementos era estranha às idéias de então, de modo que nem o parafuso telúrico de De Chancourtois, nem a lei das oitavas de Newlands poderiam garantir a atenção de ninguém.

E, no entanto, tanto De Chancourtois como Newlands, assim como Dumas e Strecker, mais do que Lenssen e Pettenkofer, haviam abordado a lei periódica e descoberto suas sementes.

A solução do problema avançava lentamente, porque os fatos, e não a lei, estavam acima de tudo em todas as

tentativas; e a lei não poderia despertar um interesse geral enquanto os elementos, sem conexão aparente uns com os outros, fossem incluídos na mesma oitava...

Como vimos, sem saber um do outro, Meyer e Mendeleev chegaram a conclusões e propostas muito parecidas, embora o alemão privilegiasse o enfoque físico enquanto o russo preferia o olhar químicoPor que então o trabalho de Mendeleev conquistou a hegemonia no mundo científico?

Meyer hesitou frente aos questionamentos que lançavam dúvidas sobre a desordem aparente dos elementos, que veremos adiante, e também quanto ao desajuste de alguns elementos em relação aos grupos em que foram colocados, além da falta de elementos que dessem coerência ao esquema geral.

Mendeleev, ao contrário de seus antecessores, confiava o bastante em sua proposta de tabela para usá-la até mesmo na previsão de elementos novos e nas propriedades de seus compostos, tendo desafiado saberes estabelecidos e corrigido pesos atômicos de alguns elementos conhecidosEnquanto outros, embora competentes, haviam vacilado, Mendeleev mostrara-se seguro em seu caminho e em suas afirmações.

Onde buscara essa forçaSua trajetória de imensos desafios e superações, como temos relatado, certamente nos dá uma boa pista.

Desenvolvida por um olhar essencialmente químico, a Tabela Periódica dos Elementos proposta por Mendeleev, após anos de calorosas discussões, acabaria por ser bem aceita pelas décadas seguintes, mesmo antes de serem estabelecidas suas fundamentações sob um olhar físico.

Foi, porém, uma longa batalha: a comunidade científica, apesar da firmeza de Mendeleev, não se convenceu de que aquele modelo era por inteiro correto.  Algumas inconsistências mostravam-se evidentes: uma era a posição de certos elementos de massa atômica bem próximas, mas com propriedades muito diferentes.

Questões como esta faziam com que os cientistas desconfiassem que o peso (massa) atômico talvez não fosse uma variável adequada como critério para a organização dos elementos.  O que, de resto, era antecipado pelo substrato do genial trabalho de Mendeleev, num exemplo notável de aplicação do método científico.

Como bem sabemos a esta altura, a resposta científica a um problema sempre traz em seu bojo o surgimento de novas questões.  Tratava-se, até aqui, de classificação, a montagem científica de um quadro geral de relações e de características individuaisNada ainda (ou quase) sobre a intimidade do átomo.