O Brasil e a Hora da Verdade (2)

Artigo 133, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Jul 2017

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Se quisermos realmente compreender nossa situação presente, torna-se necessário nos debruçarmos sobre nosso passado, o nosso baú de ricas ocorrências, nossa memória.

A historiadora Emília Viotti da Costa, ao reelaborar uma antiga reflexão de pensadores tão diversos como Edmund Burke, Karl Marx, George Santayana e Ernesto Guevara, reafirma: "Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado."

O pensamento original, do chinês Confúcio (551 a.C.-479 a.C.), recomenda: “Se queres prever o futuro, estuda o passado.”

Seria, porém, um esforço inútil e um precioso tempo (este bem não renovável) desperdiçado, se o fizéssemos apenas para buscar erros e culpados.  A culpa, inaproveitável, é o oposto da noção de responsabilidade.  Esta, a responsabilidade, que nos pode ser inicialmente desconfortável, com o tempo e a prática torna-se libertadora.  Somos todos responsáveis pelo que nos acontece, quer o admitamos ou não vimos no artigo Cidadania e Democracia (Nov 2008), que responsabilidade refere-se à capacidade de responder aos desafios.  E um dos principais desafios, que cedo ou tarde se impõem a cada um de nós, está em responder a questões essenciais comoquem sou eu”, “onde estou”, “de onde venho”, “para onde estou indo”, “o que acontece”.  Vale para cada um de nós individualmente, vale para as relações que estabelecemos na vida, vale para o conjunto social de que fazemos parte, local ou mundialmente.

Quem sou eu, quem é você, o que é o Brasil?

Coloquemos no foco de nossa atenção o que mais temos em comum: o país, a nação, o Brasil.

A caquética e maliciosa história de nossa origem insiste na “descoberta” destas terras por uma expedição comercial lusitana chefiada por Cabral, em abril de 1500; e ainda lança uma bizantina discussão sobre a intencionalidade ou não da “descoberta” de uma “novaterra que receberia, ao longo dos séculos, os nomes de Monte Pascoal, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Nova Lusitânia, Cabrália, Império do Brasil, Estados Unidos do Brasil e, agora, República Federativa do Brasil.

Toda criança, ao ouvir um dia essa ladainha, não hesita em perguntar: “Mas e os índios? Eles estavam aqui!”.  Sim, estavam; eram inúmeros povos, nações várias que somavam alguns milhões de habitantes e estavam aquimuito, muito tempo.  O fóssil mais antigo de um humano nas Américas foi encontrado em Lagoa Santa, MG, datando de cerca de 14 mil anos atrás; recebeu o nome de Luzia.  Todo o atual território brasileiro era ocupado há 12 mil anos, bem antes do término da última glaciação.  E há evidências arqueológicas (no atual Piauí) de ocupações humanas de quase 60 mil anos atrásLogo, os europeus recém chegados não eram descobridores de terras; eram invasores.

Toda a faixa litorânea atlântica, de sul a norte, era predominantemente ocupada pelos grandes grupos étnicos tupi-guarani (guaranis, tupiniquins, tupinambás), macro-jê e aruaque.  Pindorama (“terra das palmeirasouterra sem males”), era o nome que davam ao territórioPorém, como todo historiador sério sabe (assim como os interessados atentos), a História oficial é sempre contada

segundo o ponto de vista dos “vencedores”; apenas pesquisadores devotados se esforçam pelo levantamento real, tão completo quanto possível, dos fatos e dos pontos de vista dos derrotados, frequentemente dizimados.

O fato é que aqui havia gentemuito tempo e na realidade até mesmo europeus haviam aportado antes de Cabral.  Portugal e Espanha, potências mundiais à época, haviam, em 1494, “dividido o mundoocidental com o Tratado de Tordesilhas.

O Império Colonial Português (tido como o primeiro império global), então sob D. João III, e sem recursos, depois de três décadas de hesitações decidiu-se por iniciar a colonização e exploração sistemática por meio da criação, em 1534, de 14 capitanias doadas (em termos) a nobres da corte.

Desde a “descoberta”, extraia-se intensamente as árvores de pau-brasil, em disputa constante e letal com os corsários franceses que negociavam com os indígenas.  O sistema de capitanias hereditárias (passavam de pai a filho, donatários, mas não proprietários), que havia funcionado com êxito nas ilhas dos Açores e Madeira, revelou-se, com as exceções de Pernambuco e São Vicente, um completo fracassoEntão, quase meio século após Cabral, foi nomeado um governador geral para a colônia, Tomé de Souza, sucedido por Duarte da Costa, e depois este por Mem de Sá e inúmeros outros até o final do século 16.

Enquanto isso, ampliava-se a extração do pau-brasil, consolidava-se o plantio de cana-de-açúcar (razão do “sucesso” de Pernambuco e São Vicente, dando início ao ciclo da cana e, pouco depois, à escravidão de povos africanos como mão-de-obra) e guerreava-se com frequência: portugueses, aliados aos tupiniquins, contra franceses, aliados aos tupinambás, sendo os indígenas derrotados escravizados ou mortos.

Assim, pau-brasil, especiarias e açúcar foram as primeiras extrações febris destas terras para sustento da coroa portuguesa e cortes europeias várias.  No decorrer dos dois primeiros séculos, até a descoberta de ouro abundante, franceses, holandeses (que financiavam vários engenhos de cana) e ingleses enviaram seus corsários e piratas na tentativa de abocanhar aqui o seu quinhão em terras (pouquíssima gente se dá conta de que, mesmo hoje, o Brasil não faz fronteiras apenas com países de língua espanhola e indígena, do Uruguai à Venezuela: ao norte, França, Holanda e Inglaterra são nossos vizinhospor meio da Guiana Francesa, do Suriname e da Guiana).

Com as invasões e tendo como único propósito a garantia da extração extensiva e intensiva de recursos naturais, para os colonizadores (e neocolonizadores), desde então, o que conhecemos como Brasil representou (e representa) um imenso bovino, território e povos nativos ou importados de pródigo úbere a ser indefinidamente ordenhado a seu bel-prazer.

O sistema de capitanias, na prática, arrastou-se até 1821, véspera da Independência, quando então foram transformadas em províncias.

Como esta origem desdobrou-se nas etapas seguintes de exploração até nossos tempos?

(continua)