O Brasil e a Hora da Verdade (3)

Artigo 134, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Ago 2017

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Assim como não conseguimos compreender nosso presente sem refletirmos sobre nosso passado, é também insuficiente fazê-lo isolando-nos do contexto geralVale para nós, individualmente ou como sociedade, vale ainda a esta retrospecção sobre a origem e os (des)caminhos de nosso país.

Sem nos aprofundarmos em demasia na História, convém lembrar que Portugal foi o primeiro estado moderno europeu a consolidar-se como tal, no século 12, com D. Afonso Henriques dando início, em 1149, à dinastia de Borgonha e declarando-se rei de um território separado de Castela.

Embora restrito à área entre os rios Minho e Douro, o reino logo se expandiu ao sul, sobre espaços então árabes (v. O Processo do Conhecimento, Dez 2011, Jan, Fev, Mar, Abr 2012), incorporando o reino muçulmano do Algarve, porta para a África, ao final do século 13, numa configuração territorial próxima à atual.

A nova dinastia de Avis, século 14, fixou a partir de 1385 certa unificação política, alargando seus exércitos e tecendo alianças da Coroa com nobres lusitanos do sul e com os comerciantesSeus reis, a seguir, valendo-se da herança muçulmana de oito séculos (conhecimentos e pilotos), iniciaram a expansão ultramarina do século 15, resultante de ações articuladas entre o Estado, com sua burocracia e exércitos, a Igreja e as entidades comerciais, com o objetivo maior do lucro.

No início do século 16, em 1514, o rei D. Manuel, o Venturoso, em visita ao Vaticano intitulava-se "rei de Portugal, dos Algarves, d'aquém e d'além mar em África, senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, da Arábia, da Pérsia e da Índia".  Nessa viagem excessivamente pomposa para dirimir questões junto ao Papa e influir na política internacional, D. Manuel, ao chefiar embaixada tão faustosa que viesse a deslumbrar o mundo e permanecer gravada na memória por séculos, procurava dar ao mundo mostras de poder e riqueza.  Portugal, potência, tinha nesse momento apenas um concorrente à altura: a Espanha sob Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

A Inglaterra do século 16, assim como a França, era fragilizada por lutas entre as facções religiosas que, surgidas na Reforma Protestante, buscavam seu espaço políticoAli, o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, estes não apenas para subsistência, mas voltados ao mercado externo, impulsionava uma forte concentração da renda e das propriedades, fazendo com que os pequenos proprietários, ao perderem suas terras para os latifundiários, ingressassem na massa dos despossuídos e sem alternativas de trabalho.

Neste crescendo mercantilista generalizado, na defesa de seus produtos e na busca frenética por metais, com extrema frequência os interesses e a política de comércio destes países colidiam e os objetivos mercantilistas de um eram anulados pelo outro, num palco cada vez mais conflituoso.  A solução então encenada pelos dirigentes mercantis foi o domínio exercido por cada país mercantilista sobre certas áreas, consideradas monopólios, em que poderiam obter vantagens econômicas, dando origem, assim, a um forte ideário colonialista: a criação de um mercado e de uma área de produção colonial absolutamente controlados pela metrópole.

Desta maneira estruturou-se o sistema de exploração colonial que marcou a conquista e a colonização de toda a América Latina, Brasil incluído: a metrópole, o país dominador, tomava todas as decisões importantes; a colônia, unidade territorial dominada, tinha como função existencial a geração de riquezas para a metrópole, riquezas estas que poderiam advir da extração de metais preciosos ou da exportação de matérias primas.

No caso do Brasil, isto se deu inicialmente com o pau-brasil, empregado como corante e também no comércio com as Índias, seguido pelas especiarias e depois, num frenesi intenso, o açúcar da cana, produto altamente valorizado no mercado mundial, que aqui deu origem ao chamado Ciclo do Açúcar dos séculos 16 e 17.

Trazida das experiências dos Açores, Cabo Verde e Madeira, a cana aqui encontrou solo e clima favoráveis.  Faltava, entretanto, a mão de obra.

Embora os donatários das capitanias pudessem substabelecer porções menores de terras, denominadas sesmarias, não havia plano algum de incentivo à migração e colonização, não havia recursos disponíveis na Coroa para este fim e nem mesmo a eles, donatários, que deveriam prover o desenvolvimento das capitanias às suas expensas.

O que havia era a constante preocupação de não ceder o novo território aos concorrentesEm geral, mas não , os europeus que aqui aportavam eram aventureiros, muitas vezes buscando refúgio, ou eram degredados punidos ou traficantes ou corsários a serviço de França, Inglaterra e mesmo Holanda.  Havia, embora não fossem muitos, os artesãos e profissionais trazidos para a construção de fortalezas, cidades ou unidades produtivas.  Já o plantio extensivo, a colheita da cana e seu beneficiamento em açúcar, melaço e aguardente demandavam um contingente disposto, ou então obrigado, a um duro e nada compensador trabalho.

Assim como os indígenas pouco se animavam a servir a algo ou alguém que não faziam parte de sua cultura e não toleravam serem escravizados, também eram com frequência dizimados pelas doenças europeias a que seus organismos não ofereciam resistência.  Foi este o caso entre os astecas, de rica civilização no Golfo do México, e o espanhol Hernán Cortés, que, com reduzidas tropas e muita ardilosidade, praticamente destruiu a fragilizada nação.

Numa época em que o feudalismo ainda era a regra, os europeus não hesitaram em retroceder a um antigo recurso: a escravidão explícita.  Na exploração e retalhamento dos territórios e povos africanos, ali encontraram, além dos recursos naturais, um bem estabelecido comércio de escravos, quemuito tempo várias tribos se dedicavam a guerrear outras com o objetivo de capturar inimigos e vendê-los aos visitantes.

Nos cerca de trezentos anos seguintes, com a ativa participação de africanos, portugueses, brasileiros, holandeses e ingleses no tráfico negreiro, mais de três milhões de pessoas foram escravizadas e transportadas para o Brasil, vindas de locais diversos da África como Guiné (século 16), Angola (século 17, com bacongos, ambundos, benguelas e ovambos), Benin e Daomé (século 18, com iorubás, jejes, minas, hauçás, tapas e bornus) e Moçambique (século 19).

Estabeleceu-se desta forma, em triangulação, um tráfico regular duplamente lucrativo: lucrava-se com a compra de escravos da África para trabalho nos engenhos, lucrava-se com o transporte e venda do açúcar ao mundo europeu.

A unidade produtiva dos engenhos, além dos campos e da moenda, basicamente consistia na residência do senhor e sua família, a Casa Grande, que controlava e explorava em sua totalidade os escravos, e a Senzala, uma edificação insalubre em que os trabalhadores eram precariamente abrigados.

Esta relação forjada entre senhores, escravos, ruralismo e patriarcalismo compôs desde então um nefasto ideário, implantado e cultivado em corações e mentes, e, como consequência, uma perversa prática, a estruturar um cotidiano inercial de que o Brasil ainda hoje é presa farta.

(continua)