O historiador
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que gostava de apresentar-se como “o
pai do Chico”, aponta em sua obra Raízes do Brasil, de 1936 (notável
por décadas, hoje naturalmente um tanto desatualizada), várias semelhanças e
diferenças entre os traços coloniais portugueses e espanhóis na América.
A principal das
afinidades indicadas reside na “cultura da personalidade, no valor
próprio da pessoa humana, na autonomia de cada um dos homens em relação aos
semelhantes, no tempo e no espaço”, na medida em que “não precise
depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste, cada
qual filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes”.
Desta forma, a
sobranceria, a altivez como característica tão castelhana, e “a luta e
emulação que ela implicava eram tacitamente admitidas e admiradas,
engrandecidas pelos poetas, recomendadas pelos moralistas e sancionadas
pelos governos”.
Por aqui, do lado
colonial lusitano, decorria daí a debilidade “das formas de organização,
de todas as associações que implicassem solidariedade e ordenação”, já
que “em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo
durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”; logo, “a
falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno
moderno”.
Para Sérgio
Buarque, “espanhóis e portugueses nunca se sentiram à vontade em um mundo
onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno
reconhecimento”.
Quanto às
diferenças, “nenhum outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado
para se aventurar à exploração regular e intensa das terras próximas à linha
equinocial quanto os portugueses”. Portugal, entretanto, não possuía
excedente populacional que permitisse migração massiva de colonos. Apesar
disso, diversamente aos espanhóis, os portugueses aclimataram-se com
facilidade aos trópicos, cedendo aos ritmos da natureza e “não impondo à
terra e aos habitantes originais normas fixas e indeléveis”.
Importante,
acrescente-se a isto a ausência do orgulho de raça, por serem já os
portugueses um povo mestiço, próximo aos muçulmanos do norte africano e aos
negros; assim, não é surpreendente que na colônia as misturas com povos
indígenas fossem até mesmo estimuladas.
O fato histórico
resultante, na constituição do espírito dominante na colônia que veio a
formar o Brasil, é que aqui tudo girava, desde sua origem, em torno do
individualismo e do núcleo familiar, estruturando uma relação escravagista e
patriarcal, além dos vínculos de compadrio, assim dificultando, de maneira
distinta dos espanhóis, “qualquer esforço de cooperação nas atividades
produtoras, com preponderância do trabalho escravo e da indústria caseira”;
logo, poucas trocas sociais, quase nenhum comércio interno.
Neste tipo de
disposição social, a miscigenação com os povos indígenas deu origem a
gerações de aqui nascidos, integrados às novas funções, que falavam
preferencialmente derivações das línguas nativas, não o português, mas sim a
“língua dos gentios”, tornada dominante até meados do século 18.
É no encontro de
todos estes fatores que, aliados à escravidão africana e às invasões e
presenças espanhola no sul, holandesa no nordeste e francesa no Rio de
Janeiro e Maranhão, a miscigenação tornou-se assim tão variada (com ecos na
culinária e na cultura) e o português brasileiro tornou-se uma língua tão
rica em termos tupi-guaranis, árabes, africanos, castelhanos e franceses.
Na apropriação
dos espaços litorâneos para colonização, como já apontamos, houve diferenças
significativas em função dos fatores geográficos e ambientais. As terras do
nordeste, entre Salvador (a primeira capital) e Recife, eram férteis, amplas
e relativamente planas; as do sul, a partir do Rio de Janeiro em direção a
São Vicente, eram restritas a uma estreita faixa entre o mar e as serras que
antecediam o planalto. |
Em pouco tempo
estas se mostraram exauridas e, sob um modelo de exploração fortemente
predatório, era fatal que começassem a se evidenciar as diferenças entre o
sul e o norte nos
resultados econômicos dos engenhos de açúcar e outras plantações. Os
senhores de engenho mais abastados tinham recursos para importar escravos da
África; os demais, “os gentios”, não.
Iniciou-se então,
a partir do hoje território paulista, a “caça aos índios” do interior para
sua escravização, expedições que vieram a ser conhecidas como “entradas”,
realizadas a partir de meados do século 16, “bandeiras”, a partir de meados
do século 17, e, depois destas, as “monções”.
A busca por
metais, especialmente ouro e prata, presente desde a chegada de Cabral,
intensificou-se como empreitada anexa, assim como a ruptura dos limites do
“território espanhol” previsto pelo Tratado de Tordesilhas.
Procedeu-se desta
forma
à
ampliação
do “território
português”,
não
obstante
o
período
da
chamada
União
Ibérica,
de 1580 a 1640,
em
que
Portugal esteve
sob
dominação
espanhola e o
nordeste
do Brasil-colônia sofreu uma
série
de
invasões
por
parte
dos holandeses.
Não
por
acaso,
isto
se deu
enquanto
Portugal “herdava”
parte
da
guerra
que
havia sido deflagrada
entre
Espanha e Holanda,
potência
esta
cujos
banqueiros
eram
grandes
financiadores dos
engenhos
de
açúcar,
além
do
tráfico
de
escravos.
Estas
invasões
e as
tentativas
de colonização no
que
hoje
corresponde a Bahia, Pernambuco, Paraíba e Maranhão visavam
precisamente
o
controle
internacional
do
açúcar
e do
tráfico
negreiro
por
parte
da
Companhia
Holandesa das Índias
Ocidentais,
empresa emblemática do capitalismo comercial emergente.
É interessante
recordarmo-nos, a esta
altura,
de
certos
pensamentos
recorrentes,
despropositados,
que
insistem na
tese
de
que
os
brasileiros
teríamos obtido
melhor
destino
se a colonização holandesa tivesse sido a vencedora do
embate,
já
que
os holandeses foram
definitivamente
vencidos
em
1654,
embora
lograssem
alcançar
uma
pesada
indenização
paga
por
Portugal
em
1661.
Talvez
baste (mas
isto
é
duvidoso
em
mentes
paneleiras)
lembrar
a
seus
melancólicos
defensores
os
massacres
perpetrados no
nordeste,
em
1645,
pelos
holandeses,
protestantes
calvinistas,
em
que
foram mortas
mais
de cento e cinquenta
pessoas,
entre
elas
idosos,
mulheres
e
crianças,
que
se recusaram a serem “convertidas” à
nova
religião.
Depois
de 372
anos
desta
barbárie,
o
Papa
Francisco completou o
processo
de
canonização
dos trinta
primeiros
mártires
identificados.
Fosse
qual
fosse a
potência
européia, a colonização
baseada
na
exploração
intensiva
da
escravidão,
do
tráfico
e da
extração
rápida
das
riquezas
naturais
dos
territórios
ocupados
era
o
modelo
hegemônico,
algo
que
não
mais
se aplicava
há
séculos
nas
metrópoles,
mas
dolorosa
e
impiedosamente
imposto
às
colônias.
(continua) |