O Brasil e a Hora da Verdade (5)

Artigo 136, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Out 2017

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O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que gostava de apresentar-se como “o pai do Chico”, aponta em sua obra Raízes do Brasil, de 1936 (notável por décadas, hoje naturalmente um tanto desatualizada), várias semelhanças e diferenças entre os traços coloniais portugueses e espanhóis na América.

A principal das afinidades indicadas reside na “cultura da personalidade, no valor próprio da pessoa humana, na autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes, no tempo e no espaço”, na medida em que “não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste, cada qual filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes”.

Desta forma, a sobranceria, a altivez como característica tão castelhana, e “a luta e emulação que ela implicava eram tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas, recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelos governos”.

Por aqui, do lado colonial lusitano, decorria daí a debilidade “das formas de organização, de todas as associações que implicassem solidariedade e ordenação”, já que “em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”; logo, “a falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno”.

Para Sérgio Buarque, “espanhóis e portugueses nunca se sentiram à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento”.

Quanto às diferenças, “nenhum outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado para se aventurar à exploração regular e intensa das terras próximas à linha equinocial quanto os portugueses”.  Portugal, entretanto, não possuía excedente populacional que permitisse migração massiva de colonos.  Apesar disso, diversamente aos espanhóis, os portugueses aclimataram-se com facilidade aos trópicos, cedendo aos ritmos da natureza e “não impondo à terra e aos habitantes originais normas fixas e indeléveis”.

Importante, acrescente-se a isto a ausência do orgulho de raça, por serem já os portugueses um povo mestiço, próximo aos muçulmanos do norte africano e aos negros; assim, não é surpreendente que na colônia as misturas com povos indígenas fossem até mesmo estimuladas.

O fato histórico resultante, na constituição do espírito dominante na colônia que veio a formar o Brasil, é que aqui tudo girava, desde sua origem, em torno do individualismo e do núcleo familiar, estruturando uma relação escravagista e patriarcal, além dos vínculos de compadrio, assim dificultando, de maneira distinta dos espanhóis, “qualquer esforço de cooperação nas atividades produtoras, com preponderância do trabalho escravo e da indústria caseira”; logo, poucas trocas sociais, quase nenhum comércio interno.

Neste tipo de disposição social, a miscigenação com os povos indígenas deu origem a gerações de aqui nascidos, integrados às novas funções, que falavam preferencialmente derivações das línguas nativas, não o português, mas sim a “língua dos gentios”, tornada dominante até meados do século 18.

É no encontro de todos estes fatores que, aliados à escravidão africana e às invasões e presenças espanhola no sul, holandesa no nordeste e francesa no Rio de Janeiro e Maranhão, a miscigenação tornou-se assim tão variada (com ecos na culinária e na cultura) e o português brasileiro tornou-se uma língua tão rica em termos tupi-guaranis, árabes, africanos, castelhanos e franceses.

Na apropriação dos espaços litorâneos para colonização, como já apontamos, houve diferenças significativas em função dos fatores geográficos e ambientais.  As terras do nordeste, entre Salvador (a primeira capital) e Recife, eram férteis, amplas e relativamente planas; as do sul, a partir do Rio de Janeiro em direção a São Vicente, eram restritas a uma estreita faixa entre o mar e as serras que antecediam o planalto.

Em pouco tempo estas se mostraram exauridas e, sob um modelo de exploração fortemente predatório, era fatal que começassem a se evidenciar as diferenças entre o sul e o norte nos resultados econômicos dos engenhos de açúcar e outras plantações.  Os senhores de engenho mais abastados tinham recursos para importar escravos da África; os demais, “os gentios”, não.

Iniciou-se então, a partir do hoje território paulista, a “caça aos índios” do interior para sua escravização, expedições que vieram a ser conhecidas como “entradas”, realizadas a partir de meados do século 16, “bandeiras”, a partir de meados do século 17, e, depois destas, as “monções”.

A busca por metais, especialmente ouro e prata, presente desde a chegada de Cabral, intensificou-se como empreitada anexa, assim como a ruptura dos limites do “território espanhol” previsto pelo Tratado de Tordesilhas.

Procedeu-se desta forma à ampliação do “território português”, não obstante o período da chamada União Ibérica, de 1580 a 1640, em que Portugal esteve sob dominação espanhola e o nordeste do Brasil-colônia sofreu uma série de invasões por parte dos holandeses.

Não por acaso, isto se deu enquanto Portugal “herdava” parte da guerra que havia sido deflagrada entre Espanha e Holanda, potência esta cujos banqueiros eram grandes financiadores dos engenhos de açúcar, além do tráfico de escravos.  Estas invasões e as tentativas de colonização no que hoje corresponde a Bahia, Pernambuco, Paraíba e Maranhão visavam precisamente o controle internacional do açúcar e do tráfico negreiro por parte da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, empresa emblemática do capitalismo comercial emergente.

É interessante recordarmo-nos, a esta altura, de certos pensamentos recorrentes, despropositados, que insistem na tese de que os brasileiros teríamos obtido melhor destino se a colonização holandesa tivesse sido a vencedora do embate, que os holandeses foram definitivamente vencidos em 1654, embora lograssem alcançar uma pesada indenização paga por Portugal em 1661. Talvez baste (mas isto é duvidoso em mentes paneleiras) lembrar a seus melancólicos defensores os massacres perpetrados no nordeste, em 1645, pelos holandeses, protestantes calvinistas, em que foram mortas mais de cento e cinquenta pessoas, entre elas idosos, mulheres e crianças, que se recusaram a serem “convertidas” à nova religião Depois de 372 anos desta barbárie, o Papa Francisco completou o processo de canonização dos trinta primeiros mártires identificados.

Fosse qual fosse a potência européia, a colonização baseada na exploração intensiva da escravidão, do tráfico e da extração rápida das riquezas naturais dos territórios ocupados era o modelo hegemônico, algo que não mais se aplicava há séculos nas metrópoles, mas dolorosa e impiedosamente imposto às colônias.

(continua)