O Brasil e a Hora da Verdade (7)

Artigo 138, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Jan 2018

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

O pensador e escritor Guy Debórd (1931-1994, francês), autor da obra A Sociedade do Espetáculo (em que estabelece a base da crítica à sociedade de consumo e de como o domínio, a apropriação da narrativa dos fatos – verdadeiros ou falsos – condiciona o que a sociedade “deve pensar”), apontava lucidamente um dos pilares da reflexão histórica:

O raciocínio sobre a história é inseparavelmente raciocínio sobre o poder”.

O poder e o poder-fazer são sempre decorrentes do poder econômico, do poder militar, do poder de julgar, do poder de criar as leis, do poder de emitir dinheiro, do poder de convencer, do poder do conhecimento, ou, quase sempre, de uma combinação destes poderes, então o poder político, seja ele legítimo ou não.

Vimos que o Ciclo do Ouro entre os séculos 17 e 18 propiciou a primeira grande mudança depois da invasão dos europeus e da introdução da cana de açúcar.

A descoberta de ouro abundante no interior do então Estado do Brasil desencadeou uma corrida febril, tanto de aqui nascidos ou residentes como, sobretudo, de novos aventureiros d’além-mar.  Avalia-se que a população nativa de então (não indígenas, não africanos) fosse de cerca de 300 mil habitantesCom o afluxo intenso de novos imigrantes atraídos pelo ouro, esta população em poucas décadas saltou para cerca de 3 milhõesPara mais exata avaliação deste significado, estima-se que a população indígena era de 4,5 milhões e a de africanos escravizados cerca de 3 milhões de pessoas.  Portugal de então tinha apenas 2 milhões de habitantes.

Procurava-se qualquer tipo de metal valioso (ouro, prata, cobre), assim como as gemas (diamantes, esmeraldas).  A descoberta de diamantes nas Minas Gerais, em 1729, aumentou ainda mais o enorme interesse da Coroa Portuguesa, às voltas com suas dificuldades, dívidas e dependência vassala para com a Inglaterra e banqueiros de outras potências europeias, a quem o ouro seria repassado.  O aumento populacional, face às riquezas a se extrair, resultava também em crescimento da economia, com o surgimento de aldeamentos e cidades, ofícios, serviços, comércio e empregos.  Uma das consequências, em breve tempo, foi a mudança da língua cotidiana, com o tupi sendo suplantado pelo português.

Riqueza aumentada, controle sobre ela reforçado: a metrópole apertava o garrote sobre a colônia.

Pretendendo, com a introdução da lei do Regimento dos Superintendentes e Guardas-mores das Terras Minerais, regulamentar a exploração diamantífera e evitar sua ocultação ou contrabando, obteve a Coroa em resposta uma grande resistência por parte dos mineradores.  Dada a facilidade de se esconder produto tão valioso e de pequenas dimensões, a lei tornou-se quase inócua, o que levou à criação da Intendência dos Diamantes no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, em 1734, e até mesmo, em 1735, à proibição total de exploração por 4 anos; depois, em 1741, instalou-se o sistema de arrematação por contratos, vigente até 1771.

Tão vasta era esta riqueza mineral que se estima terem sido extraídos e exportados, entre 1740 e 1771, mais de 1,6 milhões de quilates, oferta que teria derrubado o preço mundial de diamantes a 25% da cotação usualSob controle direto da Coroa a partir de 1771, por meio da Real Extração, cerca de mais 3 milhões de quilates teriam sido levados até 1810.  No sentido de aumentar a fiscalização, Portugal havia, em 1763, transferido a capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, então o maior e mais ativo porto de tráfico de escravos das Américas.  Quanto ao ouro, estima-se que até 1760 mais de mil toneladas de ouro tenham sido retiradas; e isto se levando em conta apenas os registros, não o contrabando.

A esta altura, como vimos, se consolidava, em meio à população crescente, o embrião de uma nova classe intermediária, entre os extremos de senhores e escravos

Pequenos mineradores, tropeiros que promoviam o comércio interno, cultivadores de alimentos e artífices de pequenas manufaturas para o consumo dos migrantes, sapateiros, pedreiros, funcionários administrativos e outros compunham a nova fauna social agora urbana; e ainda, fruto da época e dos ventos europeus, dava-se a chegada de ideais iluministas, base ideológica de um capitalismo emergente, que vinham aportar numa colônia em que a quase totalidade da força de trabalho era escrava.

O ano de 1760, entretanto, marca o início do declínio na extração do ouro, com a exaustão do ouro aluvial e o gradativo esgotamento das minasComo Portugal arrecadava quase toda a produção, que era depois repassada às potências europeias, a crise na precária economia do Brasil-colônia foi se alastrando.

A Coroa adotara como mecanismos de controle e arrecadação o Quinto, 20% de toda a produção mineral; mas havia também estabelecido outro imposto, a Capitação, que cobrava dos senhores de lavras um valor em ouro por cada escravo que ali trabalhasse (também os livres, negros ou brancos que trabalhassem deveriam pagar).  Depois de causar a progressiva ruína em toda a região das Minas Gerais, a Capitação acabou substituída por outro imposto mais agressivo, a Derrama, vinculado ao Quinto: tratava-se de uma cota de 1.500 kg de ouro por ano que, se não paga integralmente, era cumulativa e permitia aos soldados confiscar qualquer bem do devedor, ou mesmo dos habitantes, para completá-la.

A voracidade e a violência da metrópole foram escancaradas com a publicação do Alvará de 1785, que, mesmo num contexto de um alto custo de vida para a população, fechava todas as manufaturas da colônia e a obrigava a consumir os caros produtos importados.

Ora, parte dos antes prósperos mineradores e comerciantes tinha filhos que haviam sido enviados para cursos superiores na Europa; e estes jovens estavam de volta, plenos de ideais libertários e animados pela independência dos Estados Unidos, que haviam se libertado do jugo da Inglaterra, em 1776, por motivos muito semelhantes aos que agora se apresentavam.

Como a História ensina continuamente, mesmo para um povo submisso ou tolerantelimites para a opressão ou humilhação que é possível suportar.

Quase todos os que frequentaram alguma escola lembram-se do nome (na verdade, apelido) Tiradentes, nosso cultuado herói da Inconfidência Mineira e da independência; poucos lhe sabem o nome de Joaquim José da Silva Xavier.  Mais raros ainda são os que conhecem Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, herói da Revolução Pernambucana.

Nosso cotidiano não se cansa de nos mostrar, quer nos demos conta disso ou não, a história brasileira, longe do mito cultivado, não é, como veremos, uma história pacífica ou indolente.  É uma luta constante, desde o início, entre os poderes adversos e a resistência à iniquidade.

(continua)