O
pensador e
escritor Guy Debórd (1931-1994,
francês),
autor da
obra A
Sociedade do
Espetáculo (em
que estabelece a
base da
crítica à
sociedade de
consumo e de
como o
domínio, a
apropriação da
narrativa dos
fatos – verdadeiros
ou
falsos – condiciona o
que a
sociedade “deve
pensar”), apontava lucidamente
um dos
pilares da
reflexão
histórica:
“O
raciocínio
sobre a
história é inseparavelmente
raciocínio
sobre o
poder”.
O
poder e o poder-fazer
são
sempre decorrentes do
poder
econômico, do
poder
militar, do
poder de
julgar, do
poder de
criar as
leis, do
poder de
emitir
dinheiro, do
poder de
convencer, do
poder do
conhecimento,
ou,
quase
sempre, de uma
combinação destes
poderes,
então o
poder
político, seja
ele
legítimo
ou
não.
Vimos
que o
Ciclo do
Ouro
entre os
séculos 17 e 18 propiciou a
primeira
grande
mudança
depois da
invasão dos
europeus e da
introdução da
cana de
açúcar.
A
descoberta de
ouro
abundante no
interior do
então
Estado do Brasil desencadeou uma
corrida
febril,
tanto de
aqui nascidos
ou residentes
como,
sobretudo, de
novos
aventureiros d’além-mar. Avalia-se
que a
população
nativa de
então (não
indígenas,
não
africanos) fosse de
cerca de 300
mil
habitantes.
Com o
afluxo
intenso de
novos
imigrantes atraídos
pelo
ouro, esta
população
em poucas
décadas saltou
para
cerca de 3
milhões.
Para
mais
exata avaliação deste
significado, estima-se
que a
população
indígena
era de 4,5
milhões e a de
africanos escravizados
cerca de 3
milhões de
pessoas. Portugal de
então
tinha
apenas 2
milhões de
habitantes.
Procurava-se
qualquer
tipo de
metal
valioso (ouro,
prata,
cobre),
assim
como as
gemas (diamantes,
esmeraldas). A
descoberta de
diamantes nas
Minas
Gerais,
em 1729, aumentou
ainda
mais o
já
enorme
interesse da
Coroa Portuguesa, às
voltas
com
suas
dificuldades,
dívidas e
dependência
vassala
para
com a Inglaterra e
banqueiros de outras
potências europeias, a
quem o
ouro seria repassado. O
aumento populacional,
face às
riquezas a se
extrair, resultava
também
em
crescimento da
economia,
com o
surgimento de
aldeamentos e
cidades,
ofícios,
serviços,
comércio e
empregos. Uma das consequências,
em
breve
tempo, foi a
mudança da
língua cotidiana,
com o
tupi sendo suplantado
pelo
português.
Riqueza aumentada,
controle
sobre
ela reforçado: a
metrópole apertava o
garrote
sobre a
colônia.
Pretendendo,
com a introdução da
lei do
Regimento dos
Superintendentes e Guardas-mores das
Terras
Minerais,
regulamentar a
exploração
diamantífera e
evitar
sua ocultação
ou
contrabando, obteve a
Coroa
em
resposta uma
grande
resistência
por
parte dos mineradores.
Dada a
facilidade de se
esconder
produto
tão
valioso e de
pequenas
dimensões, a
lei tornou-se
quase
inócua, o
que levou à
criação da
Intendência dos
Diamantes no
Arraial do
Tijuco,
atual
Diamantina,
em 1734, e
até
mesmo,
em 1735, à
proibição
total de
exploração
por 4
anos;
depois,
em 1741, instalou-se o
sistema de
arrematação
por
contratos, vigente
até 1771.
Tão
vasta
era esta
riqueza
mineral
que se
estima terem sido extraídos e exportados,
entre 1740 e 1771,
mais de 1,6
milhões de
quilates,
oferta
que teria derrubado o
preço mundial de
diamantes a 25% da
cotação
usual.
Sob
controle
direto da
Coroa a
partir de 1771,
por
meio da
Real
Extração,
cerca de
mais 3
milhões de
quilates teriam sido
levados
até 1810. No
sentido de
aumentar a fiscalização, Portugal
já havia,
em 1763, transferido a
capital da
colônia de
Salvador
para o
Rio de
Janeiro,
já
então o
maior e
mais
ativo
porto de
tráfico de
escravos das Américas.
Quanto ao
ouro, estima-se
que
até 1760
mais de
mil
toneladas de
ouro tenham sido
retiradas; e
isto se levando
em
conta
apenas os
registros,
não o
contrabando.
A esta
altura,
como
já vimos, se consolidava,
em
meio à
população
crescente, o
embrião de uma
nova
classe
intermediária,
entre os
extremos de
senhores e
escravos. |
Pequenos mineradores,
tropeiros
que promoviam o
comércio
interno, cultivadores de
alimentos e
artífices de
pequenas
manufaturas
para o
consumo dos migrantes,
sapateiros,
pedreiros,
funcionários
administrativos e
outros compunham a
nova
fauna
social
agora
urbana; e
ainda,
fruto da
época e dos
ventos
europeus, dava-se a
chegada de
ideais iluministas,
base ideológica de
um
capitalismo
emergente,
que
vinham
aportar numa
colônia
em
que a
quase
totalidade da
força de
trabalho
era
escrava.
O
ano de 1760,
entretanto,
marca o
início do
declínio na
extração do
ouro,
com a
exaustão do
ouro
aluvial e o
gradativo esgotamento das
minas.
Como Portugal arrecadava
quase
toda a
produção,
que
era
depois repassada às
potências europeias, a
crise na
precária
economia do Brasil-colônia foi se alastrando.
A
Coroa adotara
como
mecanismos de
controle e arrecadação o
Quinto, 20% de
toda a
produção
mineral;
mas havia
também estabelecido
outro
imposto, a Capitação,
que cobrava dos
senhores de
lavras
um
valor
em
ouro
por
cada
escravo
que
ali trabalhasse (também
os
livres,
negros
ou
brancos
que trabalhassem deveriam
pagar).
Depois de
causar a progressiva
ruína
em
toda a
região das
Minas
Gerais, a Capitação acabou substituída
por
outro
imposto mais agressivo, a
Derrama, vinculado ao
Quinto: tratava-se de uma
cota de 1.500
kg de
ouro
por
ano
que,
se não
paga
integralmente,
era cumulativa e permitia aos
soldados
confiscar
qualquer
bem do
devedor,
ou
mesmo dos
habitantes,
para completá-la.
A
voracidade e a
violência da
metrópole foram escancaradas
com a publicação do
Alvará de 1785,
que,
mesmo num
contexto de
um
já
alto
custo de
vida
para a
população, fechava todas as
manufaturas da
colônia e a obrigava a
só
consumir os
caros
produtos importados.
Ora,
parte dos
antes
prósperos mineradores e
comerciantes
tinha
filhos
que haviam sido
enviados
para
cursos
superiores na Europa; e
estes
jovens estavam de
volta,
plenos de
ideais
libertários e
animados
pela
independência dos
Estados Unidos,
que haviam se libertado do
jugo da Inglaterra,
em 1776,
por
motivos
muito
semelhantes aos
que
agora se apresentavam.
Como a
História
ensina continuamente,
mesmo
para
um
povo
submisso
ou
tolerante há
limites
para a
opressão
ou
humilhação
que é
possível
suportar.
Quase
todos os
que frequentaram alguma
escola lembram-se do
nome (na
verdade,
apelido) Tiradentes,
nosso cultuado
herói da
Inconfidência
Mineira e da
independência;
poucos
lhe sabem o
nome de Joaquim José da Silva Xavier.
Mais
raros
ainda
são os
que conhecem Joaquim do
Amor
Divino Rabelo, o
Frei
Caneca,
herói da
Revolução
Pernambucana.
Nosso cotidiano não se cansa de
nos mostrar, quer nos demos conta disso ou
não, a história brasileira, longe do mito cultivado, não é, como
veremos, uma história pacífica ou indolente. É uma luta constante, desde o
início, entre os poderes adversos e a resistência à iniquidade.
(continua) |