O Brasil e a Hora da Verdade (11)

Artigo 142, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Mai 2018

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O início do ano de 1789 encontra o ambiente da capitania das Minas Gerais mergulhado em um impasse: já em fevereiro, ninguém se atrevia a dar o primeiro passo.  O governador, Visconde de Barbacena, aconselhado à prudência pela rainha D. Maria I, hesitava em decretar a Derrama, pois temia o descontentamento geral, faltando-lhe aferir em que intensidade este se daria.  Do lado dos revoltosos, crescia a angústia pela demora na deflagração do movimento de independência.

Ávido por uma solução, Tiradentes viaja em março para o Rio de Janeiro com a finalidade de contatar aliados nas tropas e conseguir mais armas, enquanto Tomás Gonzaga se reúne com o governador para saber da iminente Derrama, procurando incitá-lo a dar início à cobrança Este, desconfiado e algo informado a respeito de uma possível revolta, protela sua decisão.

No caminho para o Rio, Tiradentes encontra o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que atendia a um chamado do governador para prestar contas de suas consideráveis dívidas, e Tiradentes lhe conta a respeito dos preparativos e da iminência da revolta.  Retornando a Vila Rica, o coronel, talvez avaliando as dissensões internas e as fragilidades do movimento, faz cálculos e decide propor uma delação ao governador em troca de suas muitas dívidas Sempre receoso, o Visconde pede que o coronel escreva sua denúncia, pondera por alguns dias e suspende a Derrama, decidindo-se por fim, em meados de abril, a enviar Joaquim Silvério ao Rio para apresentar-se diretamente ao vice-rei, D. Luís de Vasconcelos e Souza, seu tio, na capital.

Tiradentes é ali observado em sua movimentação, percebe a vigilância e busca se refugiar na casa de um conhecido, onde é afinal detido em 10 de maio o esquema de suborno do Visconde na capitania mineira garantiu que vários dos ricos participantes da conjuração fossem mantidos longe das investigações.

Mesmo negando qualquer participação, com a única exceção de Tiradentes, que depois chamou toda a responsabilidade para si, praticamente todos os conjurados foram presos e submetidos a processo (Autos da Devassa), sendo em sua maioria condenados à morte por enforcamento (11 deles) em abril de 1792.  As  demais penas foram as condenações ao degredo perpétuo (6), ao exílio por dez anos (2), às galés (trabalhos forçados, 1) ou "mandados em paz" (por pena cumprida, 2).  Três dos conjurados morreram no cárcere durante o processo, entre eles Cláudio Manoel da Costa, ainda em Vila Rica, provavelmente assassinado.  Aos cinco clérigos foram ministradas, em autos à parte, sentenças sigilosas, sendo eles recolhidos a Portugal.  Todos os bens dos condenados foram confiscados e somente quatro réus foram absolvidos por falta de provas.

Embora o processo tenha consumido três anos, foi acelerado em seu final, tendo José de Oliveira Fagundes, advogado da Santa Casa (a defensoria pública da época), sido nomeado em outubro de 1791 para a defesa e sendo os réus, no mesmo dia, intimados da pronúncia e da nomeação do defensor Este recebeu, dois dias após sua nomeação, o exíguo prazo de cinco dias para o exame do volumoso processo e a defesa de todos os réus, num evidente caso de pré-julgamento.

Mesmo réus mais abastados, como José Álvares Maciel, Francisco de Paula Freire de Andrade e Alvarenga Peixoto foram impedidos de constituir advogados Não obstante, Fagundes produziu, embora em vão, notável trabalho de defesa, mesmo tendo apenas 24h para os recursos após a promulgação das sentenças adrede preparadas.

Por se reconhecerem os réus culpados de traição, as condenações à morte foram afinal comutadas, às vésperas da execução, para degredo perpétuo na África (sabe-se hoje que esta medida fora preparada antes mesmo da condenação), exceto para o caso de Tiradentes.  A Coroa não prescindia de uma punição exemplar, um símbolo definitivo de supremacia.

Tiradentes morreu no dia 21 de abril de 1792, executado no campo de São Domingos (Campo da Lampadosa), no Rio de Janeiro, diante de enorme aparato e população, sendo depois seu corpo esquartejado e exposto à execração pública em várias localidades da Capitania das Minas e a certidão de cumprimento da sentença lavrada com seu

próprio sangue.  Determinou ainda a Coroa a demolição de sua casa, o salgamento do terreno, para que ali nada mais nascesse, e a declaração de infames para todos os seus descendentes (Tiradentes tinha dois filhos, Joaquina e João).

Em sua defesa, já nos autos, disse Tiradentes: “(...) poderia assim suceder que essa terra se fizesse uma república, e ficasse livre dos governos, que só vêm cá ensopar-se em riquezas de três em três anos, e quando eles estão desinteressados sempre têm uns criados, que são uns ladrões, e que as potências estrangeiras se admiravam, de que a América Portuguesa não se subtraísse da sujeição de Portugal”.

Falar de inconfidência é tratar de infidelidade ou deslealdade para com um governante ou estado, no caso, um crime de lesa-majestade; é a versão, a história contada pelo dominador falar de conjuração é procurar trazer os fatos à luz, o relato pelo ponto de vista do dominado que busca sua libertação, um ato legítimo e heróico.

Tiradentes, por provável decorrência das infelicidades em sua infância (perdeu a mãe aos 9 anos e o pai aos 11, sendo a fazenda da família restante, nove órfãos, vendida por conta de dívidas), assim como das vicissitudes e suas superações na fase adulta, era afeito e solidário à vida do bas-fond, a ralé, a marginália da sociedade.  Uma das consequências disto era, malgrado sua coragem e competência (provada até mesmo como um improvisado engenheiro sanitarista), a postergação continuada de suas devidas promoções na carreira militar por parte de seus superiores, que, além de não o terem como integrante da aristocracia dominante, consideravam-no um oficial de espíritoincontrolável”.

Tiradentes não concebeu a Conjuração Mineira, nem era o seu líder, embora tivesse se tornado seu mais fervoroso defensor; a ela aderiu quando soube de sua articulação Era, à sua maneira, uma espécie de herói exuberante; e imprudente, tornado símbolo de nossa independência muito mais tarde, por razões que viremos a examinar.

Esta não seria a primeira e nem a última vez em que a impaciência em Minas Gerais precipitaria os fatos: no caso de Tiradentes e a Conjuração Mineira, a desfavor dos revoltosos e de seu projeto de independência; em 1964, num ambiente de impasse algo semelhante, também a desfavor de nossas sempre incipientes e precárias república e democracia.

Naquela altura, final do século 18, a maior parte do nosso ouro reluzente havia sido saqueada e destinada às potências europeias, principalmente à Inglaterra e sua Revolução Industrial, que a faria dominadora do mundo por mais de um século a partir do golpe de 2016 o objeto do saque é o ouro negro, o petróleo do nosso pré-sal, destinado a sustentar a lenta e inexorável agonia do império mundial norte-americano.

Quanto a Joaquim Silvério dos Reis, em janeiro de 1790 o delator foi libertado da prisão na Ilha das Cobras; recompensado com o perdão de suas dívidas, ganhou pensão vitalícia, cargo público em Minas Gerais, uma mansão e condecorações Assim, inaugurou nestas plagas uma moda que pegou: certos crimes compensam, muito, a depender de quem os faz e a quem beneficiam.

(continua)