Nem bem passados
dois anos da execução de Tiradentes, foi o Rio de Janeiro, em 1794, palco de
nova repressão por parte dos prepostos locais da Coroa Portuguesa, devassa
agora dirigida contra membros ilustres da Sociedade Literária carioca.
Em 1771 havia
sido fundada, com autorização do vice-rei, a Academia Científica do Rio de
Janeiro, composta por intelectuais interessados em discutir assuntos
filosóficos, científicos e políticos, a exemplo do que acontecia em países
europeus. Na esteira destes encontros, e após o fechamento da Academia
Científica em 1779, foi criada, já em 1786 e com a participação do então
vice-rei (1779 a 1790), D. Luís de Vasconcelos e Souza, uma nova entidade
aberta, a Sociedade Literária, onde eram debatidos temas culturais e
científicos.
No final dessa
década e no início dos anos 90, os acontecimentos de uma Europa efervescente
com a Revolução Francesa haviam naturalmente passado ao centro das atenções
nas reuniões regulares de que participavam, entre outros, muitos deles
formados em Coimbra, Manuel Inácio da Silva Alvarenga (advogado, professor e
poeta), Vicente Gomes da Silva (naturalista e médico), Jacinto Marques
(médico), João Manso Pereira (químico e pesquisador), Ildefonso José da
Costa Abreu (cirurgião), João Marques Pinto (professor), José Basílio da
Gama (poeta), frei José Mariano da Conceição Veloso (autor de Flora
Fluminense) e Mariano José Pereira da Fonseca (filósofo, escritor,
político, que no futuro seria ministro da Fazenda, constituinte do Império e
Marquês de Maricá).
Uma denúncia,
feita por José Bernardo Frade (rábula), Manoel Pereira Landim (marceneiro) e
Raimundo Penaforte da Anunciação (frei que havia tomado a confissão de
Tiradentes pouco antes da execução), recebida no final de 1794 pelo novo
vice-rei, Conde de Resende, delatava os membros da Sociedade como
conspiradores que mostrariam simpatia pelas ideias republicanas. Resende de
imediato determinou o fechamento da Sociedade Literária. A seguir, sob o
pretexto de que seus membros continuavam a se reunir em outros lugares,
cerca de dez deles foram acusados de envolvimento com a Maçonaria e de
subversão, sendo presos. Casas revistadas, bens e livros apreendidos, vidas
vasculhadas, foram todos libertados quase dois anos depois, em meados de
1796, por absoluta falta de provas de conspiração.
Conhecida desde
então por Conjuração Carioca, não foi a rigor nem inconfidência, nem
conjuração. Mesmo assim, mais tarde, seguindo o crescente ímpeto
independentista, alguns de seus membros participariam da Conjuração Baiana e
também da Independência do Brasil.
Salvador, depois
de dois séculos e meio (exceto pelo breve período de 1624-1625, em que
Olinda teve essa função), deixara de ser capital da colônia, encargo e
benefícios passados ao Rio de Janeiro desde 1763; a ex-capital, entretanto,
fervilhava com os ideais de independência.
Da mesma forma
que o arrocho econômico e político sufocava a comunidade mineira, padecia a
população baiana com a carência e os altos preços de alimentos e produtos.
Da mesma maneira que intelectuais cariocas se reuniam para estudar e debater
sobre os problemas a enfrentar, baianos se organizavam para discutir
emancipação política e econômica e os ideais republicanos. O Brasil
colônia, apesar de todo cerceamento imposto pela Coroa Portuguesa, não
estava imune às notícias que chegavam (quer por estudantes em Coimbra, quer
por visitantes ou agentes franceses) a respeito dos movimentos mundiais,
como as revoluções americana e francesa e a luta pela independência no
Haiti, a primeira genuinamente realizada por escravos. Havia, contudo,
diferenças significativas a caracterizar os rebelados salvadorenses (hoje
soteropolitanos).
Se a revolta dos
conjurados mineiros restringira-se quase que exclusivamente à elite, no caso
baiano, além dos intelectuais e abastados, ela se ampliava consideravelmente
pela classe popular.
A Conjuração
Baiana se desenvolvia mais lenta e cuidadosamente, a ponto de, em 1798 e
prestes a irromper, obter participação massiva de mulatos, negros
alforriados, milicianos, militares de linha, artesãos, alfaiates, escravos,
brancos pobres, padres, pequenos comerciantes, enfim, todos trabalhadores
urbanos que constituíam a maioria da população. Conscientemente, ali se
defendia a emancipação política da colônia, com significativas mudanças
sociais: o fim do pacto colonial com Portugal; a implantação da República;
liberdade e igualdade entre as pessoas, logo, abolição dos privilégios
sociais e da escravidão, com igualdade racial e de oportunidades; liberdade
comercial no mercado interno e com o exterior; independência espiritual e
fundação da igreja brasileira Amerina, desligada da Cúria Romana.
Mesmo uma bandeira já havia sido elaborada, com faixas verticais azuis e
brancas e estrelas vermelhas ao centro encimando o dístico em latim
Surge, nec mergitur (“Apareça, não se esconda”). |
Os brasileiros
eram então privados de quaisquer postos no governo e podiam apenas exercer a
vereança nas câmaras municipais. Mas, na luta de agora, não lhes bastava
mais a mera redução dos tributos extorsivos e, sim, os meios para esmagá-los
em definitivo, juntamente com os monopólios e privilégios da metrópole e de
seus representantes. Entretanto, com a gradativa massificação do movimento,
diversamente do caso das Minas Gerais, parte da elite culta baiana (que
integrava a Loja Maçônica Cavaleiros da Luz, com grande influência nos
ideais de libertação pela leitura dos autores iluministas como Voltaire,
Rousseau e outros) dele se afastou, resultando uma liderança de fato
popular. Enquanto a elite articulava reuniões caseiras e secretas, os
despossuídos lutavam por corações e mentes murmurando diretamente nas ruas.
Se para a elite branca, rica e colonial o significado de “liberdade”
repousava na redução ou ausência de tributos, no fim do monopólio comercial
e na independência em relação a Portugal, para a população empobrecida, em
que 80% eram negros ou mulatos, o sonho de liberdade ia muito além, com o
fim da escravidão (apoiado até mesmo por alguns senhores de escravos), o fim
dos privilégios e preconceitos raciais e a implantação de uma república
livre e igualitária.
Entre seus
principais líderes estavam Cipriano José Barata de Almeida (médico,
político, filósofo, formado em Coimbra, que teria ativa participação futura
na Revolução Pernambucana, em 1817, e na Confederação do Equador, em 1824),
Lucas Dantas do Amorim Torres (escravo liberto, marceneiro, soldado), Luiz
Gonzaga das Virgens (soldado, neto de escrava), João de Deus do Nascimento e
Manuel Faustino dos Santos Lira (ambos alfaiates e descendentes de escravas)
e Hermógenes de Aguilar Pantoja (tenente encarregado do setor militar do
movimento).
Em 12 de agosto
de 1798, panfletos manuscritos da revolução começaram a ser clandestinamente
distribuídos nas ruas, portas e muros, a conclamar a população e dando conta
do breve início da insurreição. Alertado por denúncias, o governador D.
Fernando José de Portugal de imediato abriu as investigações, organizando as
forças militares para reprimir o movimento antes mesmo que fosse deflagrado,
e algumas prisões foram feitas. Uma reunião de emergência foi convocada
pelos conjurados para o dia 25 de agosto, mas o baixo comparecimento
evidenciou seus problemas de articulação. Como na Conjuração Mineira, logo
surgiram os delatores entre os participantes: o ferreiro Joaquim José da
Veiga, mulato, o barbeiro e capitão de milícia Joaquim José de Santana,
negro, e o soldado português José Joaquim de Sirqueira, branco. Com a
rápida e violenta repressão, centenas de revoltosos foram denunciados: cerca
de 700 pessoas estavam diretamente envolvidas, mas só 49 foram presas e 34
delas, indiciadas, tornaram-se réus.
Para as
investigações e julgamentos, a Coroa costumava instaurar os Juízos de
Inconfidência, tribunais de exceção destinados aos crimes contra o rei, como
no caso mineiro; no caso baiano, com a concordância da rainha, encarregou-se
a própria Relação da Bahia. A defesa, mais uma vez em vão, foi delegada a
José Barbosa de Oliveira, um dos ancestrais do futuro advogado, escritor e
candidato à presidência da república, Rui Barbosa.
Na sentença,
afinal proferida em 8 de novembro de 1799, muitos dos condenados foram
expulsos do Brasil para a África ocidental, depois de açoitados em público,
o que na prática equivalia a uma sentença de morte; mas quatro deles, negros
e pobres, de maneira exemplar foram executados na forca, na Praça da
Piedade, em Salvador, e, como Tiradentes, esquartejados: Lucas Dantas, Luiz
Gonzaga, João de Deus e Manuel Faustino.
Já os mais
abastados e da elite, como sempre e sob proteção do governador, foram
eximidos de culpa ou mais tarde anistiados.
Por todas estas
feições, e depois de estudá-las em profundidade, decidiu-se o historiador
Affonso Ruy, em 1942, por denominar a Conjuração Baiana (também conhecida
por Revolta dos Alfaiates – a profissão de vários de seus líderes – ou ainda
por Revolta dos Búzios – uma concha marinha usada como adorno para
reconhecimento mútuo de seus participantes) como a Primeira Revolução Social
Brasileira.
O ideal de
independência, república, liberdade e equidade social, no entanto,
prosperava e se enraizava na população oprimida. Era só o começo: a luta
prosseguia e muito mais estava por vir.
(continua) |