O “mundo
ocidental” encontrava-se em convulsão e quase todos os países, fossem
monarquias ou repúblicas, estavam envolvidos, em algum grau, numa grande
guerra.
A Revolução
Francesa não era assunto exclusivo dos franceses, como temiam as
monarquias. Os Estados eram, em sua maioria, monárquicos, porém, vizinhos
de várias pequenas repúblicas, embora em geral ainda não fossem países na
forma atual.
Os focos de
industrialização se concentravam na Inglaterra, as economias nacionais eram
ainda basicamente agrícolas, mas já predominava o trabalho assalariado sobre
a servidão feudal, com as populações tendendo a convergir aos grandes
centros urbanos como assim já eram Londres, Paris, São Petersburgo, Milão,
Berlim, Madri e Istambul.
Desde a
descoberta de ouro, prata e diamantes, a importância das colônias nas
Américas havia aumentado e se deslocado para o centro das políticas tanto de
Portugal como de Espanha, reforçando a ideia episódica de transformação de
um espaço colonial em sede do império.
Já em 1792 a
Corte Portuguesa havia declarado a demência da rainha D. Maria I, assumindo
a regência do império seu segundo filho, o príncipe D. João (que seria D.
João VI no Brasil, em 1818). Agora, em 1807, pressionada por todos os
lados, a situação da monarquia portuguesa era dramática. Com exceção do
período administrado pelo reformista Marquês de Pombal, que com certa
frequência contrariara interesses ingleses, Portugal tendera sempre a apoiar
indiretamente a Inglaterra, apesar de se esforçar por manter formalmente sua
pretensa neutralidade.
A Espanha, por
sua vez, até mesmo pela proximidade dinástica dos Bourbon, tendera pelos
franceses e assim seus monarcas acreditavam que a aliança com a França,
ainda que revolucionária e bonapartista, garantiria sua proteção. Prática
frequente, de que Portugal e Espanha não constituíam exceção, os parentescos
das monarquias europeias, com os casamentos de conveniência política,
atuavam como fator de garantias mútuas.
O rei espanhol
Carlos IV havia detido seu filho, Fernando VII, que se opunha abertamente ao
primeiro-ministro Manuel Godoy, pró-francês que negociava com Napoleão a
partilha de Portugal e suas colônias. Libertado depois de alguns meses,
Fernando passara a desfrutar de uma ampla popularidade, ao passo que Carlos
e Godoy eram detestados.
Em março de 1808,
os motins de Aranjuez, onde residia a Família Real, derrubam Godoy e levam
Carlos a abdicar em favor de Fernando, com Madri aderindo aos motins e sendo
logo seguida por outras cidades mais. Joachim-Napoleón Murat, cunhado de
Napoleão, enviado como chefe militar em socorro de Godoy e Carlos,
desencadeia uma repressão que resulta no massacre de mais de quatrocentos
civis, tragédia retratada nos quadros Dois de Maio em Madri e Três
de Maio em Madri, do pintor espanhol Francisco José de Goya y Lucientes,
conhecido como Francisco de Goya.
Napoleão intervém
novamente, transferindo Murat, obrigando Fernando a devolver a coroa da
Espanha ao pai, que por sua vez é obrigado a cedê-la a José, irmão de
Napoleão, e convocando ainda as lideranças espanholas a redigirem uma |
nova constituição
para uma monarquia doravante constitucional.
É então que, com a intensificação dos levantes antifranceses, começa a
guerra de fato entre Espanha e França.
Na ausência do
rei, a tradição política evocava o princípio de que a falta do portador
legítimo da soberania, o rei, devolvia esta soberania à sua origem, o povo,
ora organizado nas inúmeras juntas de governo que brotavam pelas cidades,
todas favoráveis ao restabelecimento de Fernando e da unidade da nação
espanhola, num dialético processo político simultaneamente realista, pois
monarquista, e revolucionário, pois popular.
A Espanha
dispunha de forças internas, cerca de 100 mil combatentes, para lutar contra
os soldados franceses, que eram de início de 110 a 160 mil, mais tarde 250
mil ocupantes; Portugal, não.
Mais
modestamente, comparado às convulsões em terras espanholas, Portugal também
passara pelas oscilações ora pró-Espanha e França (como no período
pombalino), ora pró-Inglaterra (quase todo o tempo desde o Tratado de
Methuen em 1703; v. O Brasil e a hora da verdade, Nov 2017), sempre
buscando equilibrar-se na “neutralidade”. Entretanto, debilitado pelas
concorrências holandesa, francesa e inglesa no Oceano Índico e Extremo
Oriente durante os séculos 17 e 18, Portugal era um Estado econômica e
militarmente fraco, com suas atividades quase que exclusivamente mercantis
centradas no Atlântico afro-americano.
A transferência
da Corte Portuguesa já havia sido cogitada em 1802, durante a Guerra das
Laranjas com a Espanha; e novamente em 1803. A sucessão de trocas de
gabinete entre 1801 e 1807, ora pró-franceses, ora pró-ingleses, manteve
Portugal numa difusa e sempre pressionada equidistância. Entre 1804 e 1807,
D. Antonio de Araújo e Azevedo, o mais pró-francês dos ministros da corte do
príncipe regente D. João, assumira os principais gabinetes.
Assim, em agosto
de 1806 uma esquadra britânica aporta na foz do Rio Tejo, onde se situa
Lisboa, sob a alegação da necessidade de defender o território português de
uma invasão francesa através da Espanha. Já em outubro Napoleão derrota a
Prússia e em novembro estabelece o bloqueio continental europeu confrontando
a Inglaterra.
No Conselho de
Estado português, que vinha se reunindo desde a chegada dos navios ingleses,
amadurece enfim, em agosto de 1807, a ideia da transferência da Corte
Portuguesa para o Brasil, o que convinha também aos interesses comerciais
ingleses: desta forma, calculava o Conselho, se garantia a sobrevida da dinastia de Bragança, bem
como a parte mais importante do império e a “proteção” inglesa, ao preço do
atendimento de seus interesses comerciais e imperiais.
Ao final de
setembro de 1807 os representantes de França e Espanha retiram-se de Lisboa;
em 22 de outubro Portugal e Inglaterra assinam uma convenção para
administração da crise e cinco dias depois França e Espanha assinam o
Tratado de Fontainebleu (que partilhava o futuro espólio lusitano), dando
início à marcha de conquista sobre Portugal, de fato atravessando a
fronteira lusitana em 19 de novembro.
No dia 26, a
decisão do Conselho de Estado é unânime pela retirada integral da Família
Real para o Rio de Janeiro, cujo embarque é feito ainda nesse dia, tendo D.
João nomeado um Conselho de Regência para administrar a metrópole em sua
ausência, com a expressa recomendação de uma acomodação com os franceses.
O mau tempo,
porém, adia a partida; mas no dia seguinte a esquadra britânica se posiciona
em Lisboa de maneira a garantir a saída segura dos 36 navios lusitanos que,
afinal, com bom tempo, zarpam para o Brasil no dia 29 de novembro de 1807,
véspera da chegada a Lisboa das tropas do general francês Jean-Andoche Junot.
A Inglaterra
combatia as tropas francesas no mar, mas ainda não se atrevia a fazê-lo em
terra; para a França, escaldada pela experiência de Trafalgar em outubro de
1805, dava-se o contrário.
Já em 1808,
sabedores dos levantes populares espanhóis, também os portugueses começam a
instituir suas juntas de governo, numa rebelião crescente, e acabam por
formar, juntamente com as tropas inglesas, um pequeno exército para o
combate aos franceses.
Na Península
Ibérica, surpreendentemente, espanhóis e portugueses, lutando juntos,
principiam a expor as vulnerabilidades das forças de Napoleão, num claro
exemplo de dialética histórica: ao exportar a revolução, impondo-a aos
invadidos, os franceses acabavam por despertar uma reação popular em defesa
das ideias de nação, liberdade e igualdade, justamente os ideais da
Revolução Francesa.
Este processo,
entretanto, era restrito às metrópoles, jamais se estendendo às colônias das
Américas, que não se opunham resolutamente a um regime antigo, monárquico,
absolutista, cristão e imperial.
Assim, como
muitas vezes sucederia em nossa história (e ainda hoje, mais do que nunca),
os acontecimentos mundiais colocavam em marcha mudanças profundas em terras
brasileiras. Para a colônia Brasil, a Roda da Fortuna movia-se mais uma
vez, dialeticamente, para o bem e para o mal, elevando nossas contradições a
outro patamar.
(continua) |