Durante
cinco anos, de 1802 a 1807, a Corte Portuguesa vivera sob tensão crescente,
com sua “neutralidade” pressionada ora por ingleses e banqueiros holandeses,
ora por franceses e espanhóis, até que, com a invasão de Portugal pelas
tropas napoleônicas, se tornara inevitável a fuga, algo atabalhoada, em
novembro de 1807, para o exílio em sua principal colônia, o Brasil.
No
caminho, uma tempestade atlântica à altura do arquipélago da Madeira divide
a frota portuguesa de navios velhos, mal adequados e superlotados, sempre
escoltada pelos ingleses, que depois se reúne em Cabo Verde para os reparos
necessários. Por segurança, a Família Real se distribui em várias naus e a
esta altura D. João decide antes se dirigir a Salvador, onde chega em 22 de
janeiro, após se desvencilhar de uma zona de calmaria, enquanto que o grosso
da comitiva já conseguira aportar no Rio de Janeiro no dia 17.
Como
veremos nos artigos seguintes e longe de tentar esgotar o assunto, esta
repentina troca de sede do que restava do antes imponente império lusitano
introduz, um século depois da primeira mudança social significativa na
colônia (promovida pelo Ciclo do Ouro; v. O Brasil e a hora da verdade,
Nov 2017), um novo grande movimento.
Desencadeado por forças sociais mundiais, após trezentos anos de colonização
só episodicamente abalados por revoltas logo sufocadas de maneira violenta,
abria-se agora um período de grandes e profundas alterações para os ‘brazilienses’,
como eram então denominados os habitantes destas terras (o termo ‘brasileiro’
só surgiria mais tarde).
Uma
segunda
grande
transformação, uma
tempestade
de
outro
tipo
se lançava
sobre
o Brasil e assim uma
primitiva
exploração
colonial,
apenas
extrativista e
predatória,
chegava ao
seu
limite
final.
Entretanto,
são
ali
lançadas raízes de
estruturas
e
modos
cujos
desdobramentos irão
perdurar
pelos
séculos
seguintes,
fazendo-se
presentes
até
nosso
cotidiano
atual.
Dada a
gravidade do momento nacional recente, inevitável é traçar-se um paralelo,
ainda que guardadas as diferenças históricas de 200 anos.
Durante
cinco anos, entre 2013 e 2018, a ex-colônia Brasil, o ex-vice-reino, o
ex-reino unido, o ex-império, viu se articularem e se agigantarem forças
atávicas que têm urdido (e sempre o farão) o assalto ao poder nacional, em
todas as suas instâncias, com o objetivo já explícito (pois nem mais se
importam com as aparências) de promoverem o desmanche acelerado das árduas
conquistas sociais históricas, de alcançarem para si a apropriação
generalizada das riquezas e de realizarem a reescravização (travestida por
“modernidades”) da população produtiva. Todo o restante, para essas forças,
parece se tratar de entulho, lixo a ser removido e descartado.
Trata-se
de ataque tão extenso e virulento que chega a apontar até mesmo para a
possibilidade concreta de o Brasil retroceder a ponto de tornar-se também
uma ex-república, não se sabendo ao certo o que restará do tecido social, da
integridade territorial, das forças produtivas ou mesmo de civilização se
esse desmonte não for detido.
As
contradições da república se acirram desde 1988, início da redemocratização
brasileira, quando a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte, em
tese livre (eleita pela população) e soberana (em suas decisões), coloca um
termo formal ao tenebroso período – longa noite de 25 anos, o tempo de uma
geração – da ditadura imposta à nação pelo golpe civil-militar de 1964.
Na
madrugada final dos trabalhos constituintes, após um extenuante ano,
consolidados com orgulho e esperança na Constituição de 1988 (a melhor que
já conseguimos produzir), naquela mesma noite de seu envio ao Congresso
Nacional – o que já por si atestava a fragilidade do período, pois assim se
evidenciava uma “soberania” débil, tutelada – iniciou-se o ataque e
descaracterização de nossa Lei Maior, com a substituição criminosa de partes
dela por textos que já a adulteravam: a Constituição que chegava ao
Congresso Nacional já não era a produzida pela Constituinte, sendo a seguir
convalidada e gradualmente dilapidada nos anos seguintes por um Congresso já
de alto teor fisiológico, logo, corrupto. A corrupção, endêmica à
colonização, Império e República Velha, havia se tornado estrutural durante
a ditadura civil-militar de 1964 a 1988, percolando, a partir da “iniciativa
privada”, todas as instâncias do Estado: executivo, legislativo, judiciário,
os pilares republicanos.
Feitas
as contas, em nossa história republicana o estado democrático de direito não
é a regra, ele constitui as exceções. É com esta pesada herança
antidemocrática que a população em geral, a população civil organizada e, em
especial, os dirigentes comprometidos com a causa e os interesses populares
da nação têm que lidar o tempo todo, sem descanso. O mal não dorme.
Em
1989
veio
Collor. Teria vindo
Lula,
mas
as
manipulações
midiáticas de
última
hora
–
Rede
Globo
à
frente,
sempre
ela,
fruto
e
esteio
da
ditadura,
e
que
já
havia tentado
fraudar
as
eleições
de 1982, no
Rio
de
Janeiro,
por
meio
de
adulteração
nas
totalizações
– reverteram o
resultado
das
eleições.
Desde
o
primeiro
dia
as
ações
de Collor deixaram
claro
o
que
viria, nenhuma
novidade
para
os
atentos:
favorecimento
das
elites,
arrocho
aos
que
produzem,
entrega
do
patrimônio
nacional,
privatizações,
confisco
de
poupanças,
mais
corrupção.
Sem
base
real,
contrariou
altos
interesses,
caiu.
Veio
Itamar, o vice moderado, conservador, honesto, elitista, mas que se cercou
de alguns competentes, entre eles dois economistas que conseguiram pensar
num plano de estabilização da nova moeda, o Real (o Brasil, desde o golpe de
1964, vivia um processo insano de inflação, inimaginável hoje por quem não
viveu essa época). Para surpresa geral, esse deu certo, depois de tantos
planos fracassados. Um |
ministro, Fernando Henrique, que nada tivera a ver com o plano, pois nada
entende de economia, dele se apropriou com o consentimento de Itamar:
fizeram um acordo de poder, eleitoral, e os méritos caíram no colo de FHC.
Eleito
em 1994 (quando mais uma vez parecia que Lula venceria), FHC não tardou a
trair Itamar (ora, pois já não haviam traído Ulisses Guimarães, o Sr.
Diretas, o chefe da Constituinte de 1988?). FHC aprofundou todo o programa
neoliberal de Collor. Tradução: entrega do patrimônio nacional,
privatização das principais estatais que cuidadosamente sucateou para
aliená-las a preço vil, concentração de renda, desindustrialização, arrocho
salarial, privilégios ao capital financeiro etc. Nenhuma novidade para os
atentos, mais uma vez, pois o pseudo-intelectual (a intelectual de fato e
por mérito era D. Ruth, sua esposa, também traída) já era conhecido por sua
defesa da única tese que criou (que nem original era): a da “vocação pela
dependência subalterna” do Brasil com relação ao capitalismo central, ou
seja, o Brasil como neocolônia (ou mesmo protetorado, como ora rebaixado
pelo golpe de 2016) dos EUA, ou melhor, do conluio de forças que o poder
vigente nos EUA representa.
Havia um
“problema” na Constituição em 1998: não era possível a reeleição, para
completar-se o desmanche. Solução fácil: mais corrupção. Denunciada à
época, mas engavetada como de hábito pelo PGR, a compra de votos no
Congresso para mais uma alteração na Constituição, hoje comprovada, correu
solta à base de R$200 mil por cabeça (cerca de R$1,5 milhões, por alto,
hoje).
Diligentemente, FHC menosprezou e sucateou as Forças Armadas, até mesmo
cedendo o controle estratégico e vigilância das fronteiras aos EUA, além de
boicotar nosso programa espacial e voluntariamente renunciar à tecnologia
nuclear. Afundou o Brasil na armadilha do endividamento público iniciado e
agravado pela ditadura, mais do que triplicou a dívida total, quebrou a
economia e o país por três vezes, submeteu-se à tirania do FMI e do
capitalismo financeiro e arrasou as reservas.
Com
o
país
deprimido, o sofrimento da
população
iniciou
um
lento
despertar
sobre
a
alternativa,
“o
outro
projeto”
que
os
brasileiros
decidiram
afinal
experimentar
nas
eleições
de 2002.
Então
Lula
–
depois
Dilma –, o PT e o
conjunto
das
forças
progressistas,
para
a
difícil
caminhada
sobre
o
fio
da
navalha,
pois
sem
maioria
no
Congresso.
Em
rápidos doze anos, de 2003 a 2014, vivenciamos a construção inédita do pleno
emprego, da acumulação de reservas (US$ 376 bilhões), do PIB multiplicado
por seis (de US$0,5 trilhões para mais de US$3 trilhões), da lenta mas
contínua distribuição de renda, investimentos estatais, modernização da
infra-estrutura, expansão do agronegócio e da agricultura familiar, do
Brasil celeiro mundial, do desenvolvimento em setores estratégicos, centenas
de escolas técnicas e universidades federais, SUS, Mais Médicos, quitação da
dívida com o FMI, retirada do Brasil do ‘mapa da fome’, 40 milhões de
pessoas saindo da pobreza extrema etc, tudo o que já relacionamos aqui em
O Brasil e a hora da verdade, Jun 2017.
O
Brasil,
então
uma
referência
mundial e respeitadíssimo
em
políticas
sociais,
ocupava
agora
um
espaço
apenas
propiciado às
grandes
potências.
Integrava o
emergente
grupo
dos BRICS e consolidava a UNASUL.
Entretanto,
como
o ideário
nacional
ainda
é o da
mente
colonial e colonizada, sintetizado na
ilusão do
monarca
absolutista
que
tudo
pode –
vezes
sem
conta
não
ouvimos o
mote
lamentoso “ah, se
eu
fosse o
presidente...”?
–, o
eleitor
brasileiro,
não
obstante
eleger
por
quatro
vezes
sucessivas uma
presidência
progressista,
comprometida
com
o
bem
estar
e a
emancipação
da
nação,
ao
mesmo
tempo
também
elegia
um
Congresso
nacional,
deputados
e
senadores,
em
sua
maioria
crescente
composto
por
medíocres
representantes do
que
de
pior
uma
história
de colonização
predatória
nos
legou: a
escravidão,
a
violência,
o
preconceito,
o
racismo,
a
intolerância,
a
exploração
do
trabalho,
a misoginia, a
homofobia,
em
suma,
o
vício,
o
ódio
social,
a
corrupção
e o
ócio
das
elites
do
atraso.
A elite
‘braziliense’ (sim, essa mesma elite perdida no tempo), em seu desespero,
arrogância, cupidez e estupidez, preferiu abrir a Caixa de Pandora, promover
mais um golpe em 2016, ferir nossa jovem democracia e soltar os demônios
nesta terra, iludida pela crença de que, uma vez servida, tais demônios
voltariam mansamente ao limbo. Nada aprenderam e nada aprenderão.
Será
muito bom para todos que Haddad, sensato, competente e pacificador (leal a
Lula, ao projeto nacional e ao povo), vença, de preferência já em primeiro
turno para não haver margem a titubeios. Mas é preciso saber, em
definitivo, que não basta: sem que o Congresso esteja à altura, nada feito.
Não se devota uma vela a Deus e outra ao diabo.
Só a
população consciente e mobilizada devolve os demônios ao devido lugar. E a
oportunidade é agora, sem hesitação.
(continua) |