O Brasil e a Hora da Verdade (15)

Artigo 146, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Set 2018

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Durante cinco anos, de 1802 a 1807, a Corte Portuguesa vivera sob tensão crescente, com sua “neutralidade” pressionada ora por ingleses e banqueiros holandeses, ora por franceses e espanhóis, até que, com a invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas, se tornara inevitável a fuga, algo atabalhoada, em novembro de 1807, para o exílio em sua principal colônia, o Brasil.

No caminho, uma tempestade atlântica à altura do arquipélago da Madeira divide a frota portuguesa de navios velhos, mal adequados e superlotados, sempre escoltada pelos ingleses, que depois se reúne em Cabo Verde para os reparos necessários.  Por segurança, a Família Real se distribui em várias naus e a esta altura D. João decide antes se dirigir a Salvador, onde chega em 22 de janeiro, após se desvencilhar de uma zona de calmaria, enquanto que o grosso da comitiva já conseguira aportar no Rio de Janeiro no dia 17.

Como veremos nos artigos seguintes e longe de tentar esgotar o assunto, esta repentina troca de sede do que restava do antes imponente império lusitano introduz, um século depois da primeira mudança social significativa na colônia (promovida pelo Ciclo do Ouro; v. O Brasil e a hora da verdade, Nov 2017), um novo grande movimento.

Desencadeado por forças sociais mundiais, após trezentos anos de colonização só episodicamente abalados por revoltas logo sufocadas de maneira violenta, abria-se agora um período de grandes e profundas alterações para os ‘brazilienses’, como eram então denominados os habitantes destas terras (o termo ‘brasileiro’ só surgiria mais tarde).

Uma segunda grande transformação, uma tempestade de outro tipo se lançava sobre o Brasil e assim uma primitiva exploração colonial, apenas extrativista e predatória, chegava ao seu limite final Entretanto, são ali lançadas raízes de estruturas e modos cujos desdobramentos irão perdurar pelos séculos seguintes, fazendo-se presentes até nosso cotidiano atual.

Dada a gravidade do momento nacional recente, inevitável é traçar-se um paralelo, ainda que guardadas as diferenças históricas de 200 anos.

Durante cinco anos, entre 2013 e 2018, a ex-colônia Brasil, o ex-vice-reino, o ex-reino unido, o ex-império, viu se articularem e se agigantarem forças atávicas que têm urdido (e sempre o farão) o assalto ao poder nacional, em todas as suas instâncias, com o objetivo já explícito (pois nem mais se importam com as aparências) de promoverem o desmanche acelerado das árduas conquistas sociais históricas, de alcançarem para si a apropriação generalizada das riquezas e de realizarem a reescravização (travestida por “modernidades”) da população produtiva.  Todo o restante, para essas forças, parece se tratar de entulho, lixo a ser removido e descartado.

Trata-se de ataque tão extenso e virulento que chega a apontar até mesmo para a possibilidade concreta de o Brasil retroceder a ponto de tornar-se também uma ex-república, não se sabendo ao certo o que restará do tecido social, da integridade territorial, das forças produtivas ou mesmo de civilização se esse desmonte não for detido.

As contradições da república se acirram desde 1988, início da redemocratização brasileira, quando a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte, em tese livre (eleita pela população) e soberana (em suas decisões), coloca um termo formal ao tenebroso período – longa noite de 25 anos, o tempo de uma geração – da ditadura imposta à nação pelo golpe civil-militar de 1964.

Na madrugada final dos trabalhos constituintes, após um extenuante ano, consolidados com orgulho e esperança na Constituição de 1988 (a melhor que já conseguimos produzir), naquela mesma noite de seu envio ao Congresso Nacional – o que já por si atestava a fragilidade do período, pois assim se evidenciava uma “soberania” débil, tutelada – iniciou-se o ataque e descaracterização de nossa Lei Maior, com a substituição criminosa de partes dela por textos que já a adulteravam: a Constituição que chegava ao Congresso Nacional já não era a produzida pela Constituinte, sendo a seguir convalidada e gradualmente dilapidada nos anos seguintes por um Congresso já de alto teor fisiológico, logo, corrupto.  A corrupção, endêmica à colonização, Império e República Velha, havia se tornado estrutural durante a ditadura civil-militar de 1964 a 1988, percolando, a partir da “iniciativa privada”, todas as instâncias do Estado: executivo, legislativo, judiciário, os pilares republicanos.

Feitas as contas, em nossa história republicana o estado democrático de direito não é a regra, ele constitui as exceções.  É com esta pesada herança antidemocrática que a população em geral, a população civil organizada e, em especial, os dirigentes comprometidos com a causa e os interesses populares da nação têm que lidar o tempo todo, sem descanso.  O mal não dorme.

Em 1989 veio Collor.  Teria vindo Lula, mas as manipulações midiáticas de última hora Rede Globo à frente, sempre ela, fruto e esteio da ditadura, e que havia tentado fraudar as eleições de 1982, no Rio de Janeiro, por meio de adulteração nas totalizações – reverteram o resultado das eleições Desde o primeiro dia as ações de Collor deixaram claro o que viria, nenhuma novidade para os atentos: favorecimento das elites, arrocho aos que produzem, entrega do patrimônio nacional, privatizações, confisco de poupanças, mais corrupção Sem base real, contrariou altos interesses, caiu.

Veio Itamar, o vice moderado, conservador, honesto, elitista, mas que se cercou de alguns competentes, entre eles dois economistas que conseguiram pensar num plano de estabilização da nova moeda, o Real (o Brasil, desde o golpe de 1964, vivia um processo insano de inflação, inimaginável hoje por quem não viveu essa época).  Para surpresa geral, esse deu certo, depois de tantos planos fracassados.  Um

ministro, Fernando Henrique, que nada tivera a ver com o plano, pois nada entende de economia, dele se apropriou com o consentimento de Itamar: fizeram um acordo de poder, eleitoral, e os méritos caíram no colo de FHC.

Eleito em 1994 (quando mais uma vez parecia que Lula venceria), FHC não tardou a trair Itamar (ora, pois já não haviam traído Ulisses Guimarães, o Sr. Diretas, o chefe da Constituinte de 1988?).  FHC aprofundou todo o programa neoliberal de Collor.  Tradução: entrega do patrimônio nacional, privatização das principais estatais que cuidadosamente sucateou para aliená-las a preço vil, concentração de renda, desindustrialização, arrocho salarial, privilégios ao capital financeiro etc.  Nenhuma novidade para os atentos, mais uma vez, pois o pseudo-intelectual (a intelectual de fato e por mérito era D. Ruth, sua esposa, também traída) já era conhecido por sua defesa da única tese que criou (que nem original era): a da “vocação pela dependência subalterna” do Brasil com relação ao capitalismo central, ou seja, o Brasil como neocolônia (ou mesmo protetorado, como ora rebaixado pelo golpe de 2016) dos EUA, ou melhor, do conluio de forças que o poder vigente nos EUA representa.

Havia um “problema” na Constituição em 1998: não era possível a reeleição, para completar-se o desmanche.  Solução fácil: mais corrupção.  Denunciada à época, mas engavetada como de hábito pelo PGR, a compra de votos no Congresso para mais uma alteração na Constituição, hoje comprovada, correu solta à base de R$200 mil por cabeça (cerca de R$1,5 milhões, por alto, hoje).

Diligentemente, FHC menosprezou e sucateou as Forças Armadas, até mesmo cedendo o controle estratégico e vigilância das fronteiras aos EUA, além de boicotar nosso programa espacial e voluntariamente renunciar à tecnologia nuclear.  Afundou o Brasil na armadilha do endividamento público iniciado e agravado pela ditadura, mais do que triplicou a dívida total, quebrou a economia e o país por três vezes, submeteu-se à tirania do FMI e do capitalismo financeiro e arrasou as reservas.

Com o país deprimido, o sofrimento da população iniciou um lento despertar sobre a alternativa, “o outro projeto que os brasileiros decidiram afinal experimentar nas eleições de 2002.  Então Lula depois Dilma –, o PT e o conjunto das forças progressistas, para a difícil caminhada sobre o fio da navalha, pois sem maioria no Congresso.

Em rápidos doze anos, de 2003 a 2014, vivenciamos a construção inédita do pleno emprego, da acumulação de reservas (US$ 376 bilhões), do PIB multiplicado por seis (de US$0,5 trilhões para mais de US$3 trilhões), da lenta mas contínua distribuição de renda, investimentos estatais, modernização da infra-estrutura, expansão do agronegócio e da agricultura familiar, do Brasil celeiro mundial, do desenvolvimento em setores estratégicos, centenas de escolas técnicas e universidades federais, SUS, Mais Médicos, quitação da dívida com o FMI, retirada do Brasil do ‘mapa da fome’, 40 milhões de pessoas saindo da pobreza extrema etc, tudo o que já relacionamos aqui em O Brasil e a hora da verdade, Jun 2017.

O Brasil, então uma referência mundial e respeitadíssimo  em políticas sociais, ocupava agora um espaço apenas propiciado às grandes potências.  Integrava o emergente grupo dos BRICS e consolidava a UNASUL.

Entretanto, como o ideário nacional ainda é o da mente colonial e colonizada, sintetizado na ilusão do monarca absolutista que tudo pode – vezes sem conta não ouvimos o mote lamentoso “ah, se eu fosse o presidente...”? –, o eleitor brasileiro, não obstante eleger por quatro vezes sucessivas uma presidência progressista, comprometida com o bem estar e a emancipação da nação, ao mesmo tempo também elegia um Congresso nacional, deputados e senadores, em sua maioria crescente composto por medíocres representantes do que de pior uma história de colonização predatória nos legou: a escravidão, a violência, o preconceito, o racismo, a intolerância, a exploração do trabalho, a misoginia, a homofobia, em suma, o vício, o ódio social, a corrupção e o ócio das elites do atraso.

A elite ‘braziliense’ (sim, essa mesma elite perdida no tempo), em seu desespero, arrogância, cupidez e estupidez, preferiu abrir a Caixa de Pandora, promover mais um golpe em 2016, ferir nossa jovem democracia e soltar os demônios nesta terra, iludida pela crença de que, uma vez servida, tais demônios voltariam mansamente ao limbo.  Nada aprenderam e nada aprenderão.

Será muito bom para todos que Haddad, sensato, competente e pacificador (leal a Lula, ao projeto nacional e ao povo), vença, de preferência já em primeiro turno para não haver margem a titubeios.  Mas é preciso saber, em definitivo, que não basta: sem que o Congresso esteja à altura, nada feito.  Não se devota uma vela a Deus e outra ao diabo.

Só a população consciente e mobilizada devolve os demônios ao devido lugar.  E a oportunidade é agora, sem hesitação.

(continua)