O Brasil e a Hora da Verdade (16)

Artigo 147, publicado no Correio da Serra, Santo Antonio do Pinhal, SP, edição de Out 2018

© 2005-2018 Fabio Ortiz Jr

 

Carta a duas amigas apreensivas

Minhas queridíssimas amigas, penso que virá uma luta renhida, qualquer que seja o resultado eleitoral; e por muito tempo.  Se quiserem ouvir, puxem uma cadeira... rsrsrs

Mantenho sempre um olho no Brasil, outro na conjuntura mundial.  No mundo todo, o Império reflui, depois de décadas de distensão (expansão) insustentável. Logo, rosna com maior ferocidade.  Explico.

É um fato, um processo verificável em vários aspectos, sejam bélicos, econômicos, geopolíticos, morais etc:

a) desde a Segunda, perdem todas as guerras que provocam, a menos que o inimigo seja muito fraco; e, mesmo assim, as poucas vitórias são temporárias: o tempo passa, a resistência se reorganiza e eles perdem no fim;

b) conseguiram perder o Leste Asiático, o domínio absoluto da América Latina, agora o Oriente Médio, quase todo, e também parte da África.  Suas Forças Armadas e toda sua política de "potência benigna" são motivo de piada mundial, sustentam-se apenas pelo poder dos mísseis, nucleares ou não.  E todo militar sabe muito bem que o que importa realmente é o que chamamos de "coturnos em solo", sem o que não há vitória real possível;

c) apesar de terem mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo (o que até então garantia a dominação), seu poder imperial está em refluxo agora acelerado, não há mais como sustentar esse orçamento ou mesmo essa tese (a população estadunidense, cada vez mais pobre e endividada, mais e mais deseja a paz).  Os EUA são hoje o país mais desigual do mundo, um abismo entre os 1% e os "restantes" 99%, mais de 40 milhões abaixo da linha da pobreza e aumentando rapidamente, milhões de homeless nas ruas, nenhum SUS, nenhum PROUNI, nem FIES: quem quiser faculdade, trabalhará metade de sua vida útil para pagar a dívida; se precisar de cirurgia ou tratamento médico de porte, trabalhará o que restar dela (e talvez ainda um tanto dos descendentes);

d) isto se dá basicamente porque não detêm mais, os EUA, condições de manter o que possibilitou esta hegemonia: o dólar.  Depois da Segunda Guerra, e das criminosas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, os psicopatas conseguiram impor o dólar como moeda padrão de todas as transações internacionais, originalmente lastreada pelo ouro que já detinham e pelo ouro que foi saqueado de todas as demais economias, como a Inglaterra imperial fizera ao criar o padrão ouro para a libra comercial, ouro saqueado direta ou indiretamente – caso do Brasil – das colônias.  Dólar esse, note-se, que apenas eles são capazes de emitir, claro.  Imaginem uma potência mundial impondo aos demais uma moeda, papel com tinta, que apenas eles se outorgam o direito exclusivo de emitir a seu bel prazer...  Criaram, e viveram à exaustão, sua insustentável ilha da fantasia;

e) quando toda essa distensão, exploração, hegemonia e padrão interno de vida passou a custar mais do que eram capazes de garantir (produzir riqueza real) ou lastrear, veio o último golpe (Nixon, 1971): após as evidentes fissuras no edifício imperial e antes que se demonstrasse a ruína a caminho, outorgaram-se o direito de emitir dólares SEM qualquer lastro, com a finalidade de poderem não só manipular geopoliticamente a quantidade de moeda, para manterem a hegemonia, mas também visando "cobrir" seu déficit crescente e insanável, sua desde então inacreditável dívida pública, interna e externa;

f) desde 1971, fissuras viraram trincas, agora rachaduras; passadas quatro décadas, começa a cair a poeira que antecede o desMOROnamento.  Não faltou quem advertisse, interna e externamente.  Neste ano, só o déficit anual já ultrapassou US$ 1,1 trilhão de dólares!  A dívida dos EUA neste momento está da ordem de mais de US$ 21 trilhões e crescendo!  Não há como pagá-la, não há como saná-la, nem há como estancá-la; para rolar a coisa mais adiante, vivem emitindo "papéis do tesouro" (mais dívidas para pagar dívidas anteriores; os brasileiros sabemos bem como é isso individualmente, mas poucos percebem o que é isso nacionalmente) e empurrando goela abaixo dos países submissos ou daqueles que podem e não querem ver a coisa explodir incontrolavelmente (já que a guerra é a saída clássica para aquele tipo de gente).  Só a China é credora de cerca de US$ 3,3 trilhões dessa dívida; o Japão (paradoxalmente hoje o país mais endividado do mundo), de US$ 1,2 trilhões; o Brasil sob Lula 2, pasmem, era o terceiro da lista com algo perto de US$ 0,4 trilhões a ver.  Vocês imaginam estes países dizendo "Chega, viemos cobrar o nosso!"?  Por que outra razão China e Rússia passaram a comprar todo o ouro possível nos últimos dez anos (o Brasil também, antes do golpe)?  Por que razão a Rússia acaba de vender quase todos os títulos que detinha da dívida americana, cautela que vários países começaram a discretamente adotar?  E por que outra razão também começaram a repatriar toneladas de ouro antes depositadas para guarda nos cofres americanos?

g) o capitalismo, de início comercial, tornara-se agrário e depois industrial; desenvolvido ao máximo, ainda se baseava em átomos.  Entregue desregulado às elites desreguladas, deu-se o controle do mundo ao capitalismo financeiro, o tal de neoliberalismo, o "Cassino Irreale": endividamento público intencional, juros escravizantes, dinheiro fazendo dinheiro, ficção até a bolha final; não o céu, o inferno é o (i)limite, tudo agora baseado em bits;

h) o mundo lúcido e responsável, BRICS à frente, buscava e busca conduzir o império arruinado ao chamado "pouso suave", uma transição pacífica que permitirá a existência de lugar para todos, em outras bases, multilaterais e não imperiais.  Já os psicopatas, não: namoram a ideia de que é possível uma guerra até mesmo termonuclear.  Para os psicopatas (e sua deficiência congênita é a ausência de alteridade – alter, o Outro – a capacidade de se colocar no lugar do outro, a empatia), para eles não há o Outro, não há outros, há apenas coisas a serem manipuladas.  O mundo civilizado se esforça, tolera todas as provocações, elabora o xadrez político e econômico, tudo para evitar essa hecatombe, pois os sobreviventes, se houver, estarão em condição mais adversa do que a humanidade do Paleolítico;

i) é assim que, nesse inevitável encolhimento rumo às próprias fronteiras, o que resta ao Império é garantir, a ferro e fogo, custe o que custar, a posse e usufruto do que sempre considerou seu quintal, a reserva última para sua sobrevivência imperial, a América Latina (e toca meter base na Colômbia, na Argentina, no Brasil...).  Logo, o golpe, todos os golpes.  Agora sob novo método, a guerra híbrida: nada de militares armados à testa, pois (eles aprenderam) militares armados podem vir a ter (e acabam tendo) ideias próprias, ideias armadas; basta agora ter (1) o controle (se monopólio, melhor) da narrativa, a guerra de informação/contra-informação, mas sobretudo da desinformação popular, (2) controle (por ideologia, cooptação ou chantagem) do legislativo e (3) controle do judiciário (idem).  É fatura garantida: eles fazem as leis que lhes interessam, eles investigam, eles julgam e eles contam a história.  É a ditadura naturalizada, normalizada e “legal”;

j) essa guerra reza também que se não for possível se apropriar do inimigo, que é todo e qualquer um que se oponha aos seus interesses (como eles mesmos anunciam:

"Os EUA não têm amigos, têm interesses"), deve-se então destruí-lo, inviabilizá-lo, remetê-lo à barbárie.  Que o digam, por exemplo, os iraquianos, os líbios e agora os sírios, os venezuelanos e tantos outros povos.  O mesmo será tentado em todos os lugares; e é o que acontece agora conosco.  O que há de visivelmente comum a estes casos, queridas geólogas?  Petróleo, evidente.  Mas não só: há o dólar.

Saddam Hussein foi ao início criado por obra dos EUA, para que estabilizasse a região, suas tribos e facilitasse a exploração do petróleo iraquiano; foi treinado, financiado, armado pelos EUA.  De fato, civilizou o Iraque, por mais que a propaganda diga o oposto.  Quando já tinha um país unido e próspero, sentiu-se forte o bastante para tentar um voo solo: confiando no interesse e apoio da UE, "União" Europeia, anunciou que doravante todos os seus contratos de venda seriam realizados em euros, não mais dólares.  Meses depois, o Iraque invadido por americanos e europeus e demolido sob o pretexto de ter "armas de destruição em massa", nunca encontradas pois, como se comprovou, inexistentes, Saddam estava morto após "julgamento" por “crimes de guerra” (hoje, minimamente reorganizado, o Iraque põe os EUA para correr, embora em termos).

Anos depois, foi a vez da Líbia e Muammar al-Gaddafi, mesmíssimo roteiro; a Líbia, entretanto, após a regressão, permanece sob divisões tribais.

Então, a seguir, em 2011 o mesmo com a Síria: demolição total de um estado secular, laico, com liberdade religiosa, ilha de referência cultural.  Quase conseguiram, diretamente, com bombardeios e tropas e com o concurso dos grupos de terroristas islâmicos que eles criaram e alimentaram enquanto justificavam sua invasão alegando combatê-los.  Foi então que a Rússia, vizinha, já algo recuperada da devastação promovida pelo bêbado americanófilo Yéltsin, rearticulada e rearmada, decidiu-se por estabelecer um limite, uma linha vermelha ("Na minha fronteira, não! Preparando terroristas para agirem aqui dentro, não!").  Combinação entre Assad e Putin, um convite-pedido de auxílio à Rússia, previsto pela lei internacional, foi atendido e os russos socorreram a Síria com consultores militares, equipamento bélico, treinamento e informação.  Prudente, a Rússia não enviou tropas para não haver possibilidade de confronto direto com americanos, que desejavam a ampliação ilimitada da guerra, e nem fez uma mobilização de recursos massivos: bastou uma ajuda relativamente pequena e uma grande competência em jogar xadrez político.  Com o apoio do Irã, este sim com tropas, e do Iraque, além do eficiente Hezbollah libanês, uma Síria quase destruída reverteu o destino da guerra.  Restam hoje apenas dois bolsões cercados, ao norte (com terroristas e tropas turcas em seu jogo ambivalente) e a nordeste (com tropas americanas e os curdos a esta hora arrependidos do engano tático).  Com ajuda, o exército sírio se recompôs e venceu a guerra;

k) os EUA tentarão impedir a reconstrução síria, mas Rússia, China, Irã e, agora, europeus, Alemanha à frente, estão interessadíssimos em realizá-la.  Aliás, nesta semana, a tríade europeia (Alemanha, França, Inglaterra), sempre subserviente, finalmente deu o primeiro grande salto em rebeldia: driblando legalmente (aí uma longa história a respeito da criação de legalidades ao sabor das conveniências) as sanções que os EUA sob Trump vêm reiteradamente impondo a todos em sua guerra comercial ao mundo, criaram em nome da UE um mecanismo para continuarem a negociar petróleo iraniano sem serem submetidos a sanções comerciais americanas.  Detalhe: negócios em euros, não dólares.  Saddam e Gaddafi, se ainda existirem em algum lugar, devem estar se divertindo; e a Venezuela, afinal, como sabem, a maior reserva mundial de petróleo, acaba de anunciar o abandono do dólar em suas transações internacionais;

l) tudo isto se dá, agora, numa conjuntura em que os BRICS (ora abalados pelos problemas de Brasil e Índia) criaram um banco de investimentos (NBD), a Rússia articulou uma grande integração eurasiana para projetos e financiamentos (UEE), a China construiu e implanta acordos (BAII, OCX) para desenvolver as Novas Rotas da Seda (ICE, escoamento de exportações por terra, integrando países do Extremo Oriente até a Europa), a UE enfim se rebela contra a tutela americana, grande parte do comércio euroasiático já é feito em euros, yuan (ou renminbi) e rublos, sendo que a moeda chinesa começa a se preparar para ser aceita como reserva internacional, pondo fim à exclusividade do dólar, e por aí vai a coisa.

Quando todo este processo estiver maduro, coisa de dez anos, o mundo será outro.  O Império não está apenas se recolhendo; está desMOROnando, sim.  Quando perder afinal a América Latina, terá que se virar exclusivamente com as próprias forças.  O Canadá só aguarda a hora.  Espera-se, deseja-se ansiosamente, que o povo americano acorde a tempo; e os brasileiros idem.  A parte sadia do mundo não quer ver ruínas; quer ver esperança.

Esse, amigas, o grande quadro desta guerra mundial atual, terceira, a chamada Híbrida ou Total (híbrida, no sentido da variedade de modalidades de embate; total, porque abarcando a sociedade como um todo, país, nação, identidade, território), a emoldurar as batalhas que travamos diariamente, o que inclui esta "pequena" nossa eleição, como tantas outras, em que é possível perceber claramente a interferência externa via Steve Bannon, coordenador da campanha de Trump e do Broncossauro, especialista em fake news, nome bonitinho para mentira pura, escandalosa e massiva, crime em que acabam de ser flagrados.  É com isto que estamos lidando.  Não são os EUA nação, população que, como qualquer outra, deseja paz: são os EUA "estado profundo", braço do que é conhecido no mundo por "império anglo-sionista" (uma longa história), as mãos invisíveis que controlam todas as siglas de três letras por lá, CIA, NSA, FBI, DEA etc e, claro, o Pentágono, além dos dois grandes partidos e toda a grande mídia.  É sempre bom lembrar que, poucos dias antes de passar a presidência a John Kennedy, o então presidente Eisenhower – general comandante das forças americanas na Europa durante a Segunda Guerra – enfaticamente advertia, em discurso histórico, a respeito da monstruosidade que se erguia a partir do que chamou de complexo industrial-militar, o braço pesado da hoje ditadura do capitalismo financeiro.  Menos de quatro anos depois, logo após declarar combate a essa estrutura subterrânea, Kennedy estava morto.

Dá para contar, dá para explicar à população em geral, ao povão em particular?

Penso que sim; mas, lembrando Churchill, custa sangue, suor e lágrimas, todos os dias.  E ainda tempo, muito tempo.  E, se continuarmos a permitir que "eles" dominem a narrativa, não acontecerá nunca, com “legislativo, com STF, com tudo".  Eles conseguirão "manter isso aí, viu?".

Como Sísifo, veremos sempre a pedra rolar morro abaixo, não importa quão próximo o topo se apresente em nossa caminhada e fantasia.

PS1: posso ter me equivocado em um ou outro dado e mesmo na grafia de alguns nomes. Mas no essencial é isso que vejo. Bjs

PS2: acrescentei dois links do Youtube que remetem aos discursos dos ex-presidentes americanos

- Eisenhower, alertando sobre o complexo industrial-militar que se erguia

- Kennedy, declarando combate ao “estado profundo”

https://www.youtube.com/watch?v=5RkcD2so6ZI

https://www.youtube.com/watch?v=Ec-7D-JyeMc

PS3: e ainda um link para artigo de Pepe Escobar, que se especializou em Ásia, sobre Rota da Seda e América Latina

http://blogdoalok.blogspot.com/2018/02/novas-rotas-da-seda-da-china-chegam.html

(continua)