Carta a duas amigas
apreensivas
Minhas queridíssimas
amigas, penso que virá uma luta renhida, qualquer que seja o resultado
eleitoral; e por muito tempo. Se quiserem ouvir, puxem uma cadeira...
rsrsrs
Mantenho sempre um olho no
Brasil, outro na conjuntura mundial. No mundo todo, o Império reflui,
depois de décadas de distensão (expansão) insustentável. Logo, rosna com
maior ferocidade. Explico.
É um fato, um processo
verificável em vários aspectos, sejam bélicos, econômicos, geopolíticos,
morais etc:
a) desde a Segunda, perdem
todas as guerras que provocam, a menos que o inimigo seja muito fraco; e,
mesmo assim, as poucas vitórias são temporárias: o tempo passa, a
resistência se reorganiza e eles perdem no fim;
b) conseguiram perder o
Leste Asiático, o domínio absoluto da América Latina, agora o Oriente Médio,
quase todo, e também parte da África. Suas Forças Armadas e toda sua
política de "potência benigna" são motivo de piada mundial, sustentam-se
apenas pelo poder dos mísseis, nucleares ou não. E todo militar sabe
muito bem que o que importa realmente é o que chamamos de "coturnos em
solo", sem o que não há vitória real possível;
c) apesar de terem mais de
800 bases militares espalhadas pelo mundo (o que até então garantia a
dominação), seu poder imperial está em refluxo agora acelerado, não há mais
como sustentar esse orçamento ou mesmo essa tese (a população estadunidense,
cada vez mais pobre e endividada, mais e mais deseja a paz). Os EUA
são hoje o país mais desigual do mundo, um abismo entre os 1% e os
"restantes" 99%, mais de 40 milhões abaixo da linha da pobreza e aumentando
rapidamente, milhões de homeless nas ruas, nenhum SUS, nenhum PROUNI,
nem FIES: quem quiser faculdade, trabalhará metade de sua vida útil para
pagar a dívida; se precisar de cirurgia ou tratamento médico de porte,
trabalhará o que restar dela (e talvez ainda um tanto dos descendentes);
d) isto se dá basicamente
porque não detêm mais, os EUA, condições de manter o que possibilitou esta
hegemonia: o dólar. Depois da Segunda Guerra, e das criminosas bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, os psicopatas conseguiram impor o dólar
como moeda padrão de todas as transações internacionais, originalmente
lastreada pelo ouro que já detinham e pelo ouro que foi saqueado de todas as
demais economias, como a Inglaterra imperial fizera ao criar o padrão ouro
para a libra comercial, ouro saqueado direta ou indiretamente – caso do
Brasil – das colônias. Dólar esse, note-se, que apenas eles são
capazes de emitir, claro. Imaginem uma potência mundial impondo aos
demais uma moeda, papel com tinta, que apenas eles se outorgam o direito
exclusivo de emitir a seu bel prazer... Criaram, e viveram à exaustão,
sua insustentável ilha da fantasia;
e) quando toda essa
distensão, exploração, hegemonia e padrão interno de vida passou a custar
mais do que eram capazes de garantir (produzir riqueza real) ou lastrear,
veio o último golpe (Nixon, 1971): após as evidentes fissuras no edifício
imperial e antes que se demonstrasse a ruína a caminho, outorgaram-se o
direito de emitir dólares SEM qualquer lastro, com a finalidade de poderem
não só manipular geopoliticamente a quantidade de moeda, para manterem a
hegemonia, mas também visando "cobrir" seu déficit crescente e insanável,
sua desde então inacreditável dívida pública, interna e externa;
f) desde 1971, fissuras
viraram trincas, agora rachaduras; passadas quatro décadas, começa a cair a
poeira que antecede o desMOROnamento. Não faltou quem advertisse,
interna e externamente. Neste ano, só o déficit anual já ultrapassou
US$ 1,1 trilhão de dólares! A dívida dos EUA neste momento está da
ordem de mais de US$ 21 trilhões e crescendo! Não há como pagá-la, não
há como saná-la, nem há como estancá-la; para rolar a coisa mais adiante,
vivem emitindo "papéis do tesouro" (mais dívidas para pagar dívidas
anteriores; os brasileiros sabemos bem como é isso individualmente, mas
poucos percebem o que é isso nacionalmente) e empurrando goela abaixo dos
países submissos ou daqueles que podem e não querem ver a coisa explodir
incontrolavelmente (já que a guerra é a saída clássica para aquele tipo de
gente). Só a China é credora de cerca de US$ 3,3 trilhões dessa
dívida; o Japão
(paradoxalmente hoje o país mais endividado do mundo),
de US$ 1,2 trilhões; o Brasil sob Lula 2, pasmem, era o terceiro da lista
com algo perto de US$ 0,4 trilhões a ver. Vocês imaginam estes países
dizendo "Chega, viemos cobrar o nosso!"? Por que outra razão
China e Rússia passaram a comprar todo o ouro possível nos últimos dez anos
(o Brasil também, antes do golpe)? Por que razão a Rússia acaba de
vender quase todos os títulos que detinha da dívida americana, cautela que
vários países começaram a discretamente adotar? E por que outra razão
também começaram a repatriar toneladas de ouro antes depositadas para guarda
nos cofres americanos?
g) o capitalismo, de
início comercial, tornara-se agrário e depois industrial; desenvolvido ao
máximo, ainda se baseava em átomos. Entregue desregulado às elites
desreguladas, deu-se o controle do mundo ao capitalismo financeiro, o tal de
neoliberalismo, o "Cassino Irreale": endividamento público intencional,
juros escravizantes, dinheiro fazendo dinheiro, ficção até a bolha final;
não o céu, o inferno é o (i)limite, tudo agora baseado em bits;
h) o mundo lúcido e
responsável, BRICS à frente, buscava e busca conduzir o império arruinado ao
chamado "pouso suave", uma transição pacífica que permitirá a existência de
lugar para todos, em outras bases, multilaterais e não imperiais. Já
os psicopatas, não: namoram a ideia de que é possível uma guerra até mesmo
termonuclear. Para os psicopatas (e sua deficiência congênita é a
ausência de alteridade – alter, o Outro – a capacidade de se colocar
no lugar do outro, a empatia), para eles não há o Outro, não há outros, há
apenas coisas a serem manipuladas. O mundo civilizado se esforça,
tolera todas as provocações, elabora o xadrez político e econômico, tudo
para evitar essa hecatombe, pois os sobreviventes, se houver, estarão em
condição mais adversa do que a humanidade do Paleolítico;
i) é assim que, nesse
inevitável encolhimento rumo às próprias fronteiras, o que resta ao Império
é garantir, a ferro e fogo, custe o que custar, a posse e usufruto do que
sempre considerou seu quintal, a reserva última para sua sobrevivência
imperial, a América Latina (e toca meter base na Colômbia, na Argentina, no
Brasil...). Logo, o golpe, todos os golpes. Agora sob novo
método, a guerra híbrida: nada de militares armados à testa, pois
(eles aprenderam) militares armados podem vir a ter (e acabam tendo) ideias
próprias, ideias armadas; basta agora ter (1) o controle (se monopólio,
melhor) da narrativa, a guerra de informação/contra-informação, mas
sobretudo da desinformação popular, (2) controle (por ideologia,
cooptação ou chantagem) do legislativo e (3) controle do
judiciário (idem). É fatura garantida: eles fazem as leis que lhes
interessam, eles investigam, eles julgam e eles contam a história. É a
ditadura naturalizada, normalizada e “legal”;
j) essa guerra reza também
que se não for possível se apropriar do inimigo, que é todo e qualquer um
que se oponha aos seus interesses (como eles mesmos anunciam:
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"Os EUA não
têm amigos, têm interesses"), deve-se então destruí-lo, inviabilizá-lo,
remetê-lo à barbárie. Que o digam, por exemplo, os iraquianos, os
líbios e agora os sírios, os venezuelanos e tantos outros povos. O
mesmo será tentado em todos os lugares; e é o que acontece agora conosco.
O que há de visivelmente comum a estes casos, queridas geólogas?
Petróleo, evidente. Mas não só: há o dólar.
Saddam Hussein foi ao início criado por obra dos EUA, para que estabilizasse
a região, suas tribos e facilitasse a exploração do petróleo iraquiano; foi
treinado, financiado, armado pelos EUA. De fato, civilizou o Iraque,
por mais que a propaganda diga o oposto. Quando já tinha um país unido
e próspero, sentiu-se forte o bastante para tentar um voo solo: confiando no
interesse e apoio da UE, "União" Europeia, anunciou que doravante todos os
seus contratos de venda seriam realizados em euros, não mais dólares.
Meses depois, o Iraque invadido por americanos e europeus e demolido sob o
pretexto de ter "armas de destruição em massa", nunca encontradas pois, como
se comprovou, inexistentes, Saddam estava morto após "julgamento" por
“crimes de guerra” (hoje, minimamente reorganizado, o Iraque põe os EUA para
correr, embora em termos).
Anos depois, foi a vez da Líbia e Muammar al-Gaddafi, mesmíssimo roteiro; a
Líbia, entretanto, após a regressão, permanece sob divisões tribais.
Então, a seguir, em 2011 o mesmo com a Síria: demolição total de um estado
secular, laico, com liberdade religiosa, ilha de referência cultural.
Quase conseguiram, diretamente, com bombardeios e tropas e com o concurso
dos grupos de terroristas islâmicos que eles criaram e alimentaram enquanto
justificavam sua invasão alegando combatê-los. Foi então que a Rússia,
vizinha, já algo recuperada da devastação promovida pelo bêbado
americanófilo Yéltsin, rearticulada e rearmada, decidiu-se por estabelecer
um limite, uma linha vermelha ("Na minha fronteira, não! Preparando
terroristas para agirem aqui dentro, não!"). Combinação entre
Assad e Putin, um convite-pedido de auxílio à Rússia, previsto pela lei
internacional, foi atendido e os russos socorreram a Síria com consultores
militares, equipamento bélico, treinamento e informação. Prudente, a
Rússia não enviou tropas para não haver possibilidade de confronto direto
com americanos, que desejavam a ampliação ilimitada da guerra, e nem fez uma
mobilização de recursos massivos: bastou uma ajuda relativamente pequena e
uma grande competência em jogar xadrez político. Com o apoio do Irã,
este sim com tropas, e do Iraque, além do eficiente Hezbollah libanês, uma
Síria quase destruída reverteu o destino da guerra. Restam hoje apenas
dois bolsões cercados, ao norte (com terroristas e tropas turcas em seu jogo
ambivalente) e a nordeste (com tropas americanas e os curdos a esta hora
arrependidos do engano tático). Com ajuda, o exército sírio se
recompôs e venceu a guerra;
k) os EUA tentarão impedir
a reconstrução síria, mas Rússia, China, Irã e, agora, europeus, Alemanha à
frente, estão interessadíssimos em realizá-la. Aliás, nesta semana, a
tríade europeia (Alemanha, França, Inglaterra), sempre subserviente,
finalmente deu o primeiro grande salto em rebeldia: driblando legalmente (aí
uma longa história a respeito da criação de legalidades ao sabor das
conveniências) as sanções que os EUA sob Trump vêm reiteradamente impondo a
todos em sua guerra comercial ao mundo, criaram em nome da UE um mecanismo
para continuarem a negociar petróleo iraniano sem serem submetidos a sanções
comerciais americanas. Detalhe: negócios em euros, não dólares.
Saddam e Gaddafi, se ainda existirem em algum lugar, devem estar se
divertindo; e a Venezuela, afinal, como sabem, a maior reserva mundial de
petróleo, acaba de anunciar o abandono do dólar em suas transações
internacionais;
l) tudo isto se dá, agora,
numa conjuntura em que os BRICS (ora abalados pelos problemas de Brasil e
Índia) criaram um banco de investimentos (NBD), a Rússia articulou uma
grande integração eurasiana para projetos e financiamentos (UEE), a China
construiu e implanta acordos (BAII, OCX) para desenvolver as Novas Rotas da Seda
(ICE, escoamento de exportações por terra, integrando países do Extremo
Oriente até a Europa), a UE enfim se rebela contra a tutela americana,
grande parte do comércio euroasiático já é feito em euros, yuan (ou renminbi)
e rublos, sendo que a moeda chinesa começa a se preparar para ser aceita
como reserva internacional, pondo fim à exclusividade do dólar, e por aí vai
a coisa.
Quando todo este processo
estiver maduro, coisa de dez anos, o mundo será outro. O Império não
está apenas se recolhendo; está desMOROnando, sim. Quando perder
afinal a América Latina, terá que se virar exclusivamente com as próprias
forças. O Canadá só aguarda a hora. Espera-se, deseja-se
ansiosamente, que o povo americano acorde a tempo; e os brasileiros idem.
A parte sadia do mundo não quer ver ruínas; quer ver esperança.
Esse, amigas, o grande
quadro desta guerra mundial atual, terceira, a chamada Híbrida ou Total
(híbrida, no sentido da variedade de modalidades de embate; total, porque
abarcando a sociedade como um todo, país, nação, identidade, território), a
emoldurar as batalhas que travamos diariamente, o que inclui esta "pequena"
nossa eleição, como tantas outras, em que é possível perceber claramente a
interferência externa via Steve Bannon, coordenador da campanha de Trump e
do Broncossauro, especialista em fake news, nome bonitinho para
mentira pura, escandalosa e massiva, crime em que acabam de ser flagrados. É com isto que estamos lidando. Não
são os EUA nação, população que, como qualquer outra, deseja paz: são os EUA
"estado profundo", braço do que é conhecido no mundo por "império
anglo-sionista" (uma longa história), as mãos invisíveis que controlam todas
as siglas de três letras por lá, CIA, NSA, FBI, DEA etc e, claro, o
Pentágono, além dos dois grandes partidos e toda a grande mídia. É
sempre bom lembrar que, poucos dias antes de passar a presidência a John
Kennedy, o então presidente Eisenhower – general comandante das forças
americanas na Europa durante a Segunda Guerra – enfaticamente advertia, em
discurso histórico, a respeito da monstruosidade que se erguia a partir do
que chamou de complexo industrial-militar, o braço pesado da hoje
ditadura do capitalismo financeiro. Menos de quatro anos depois, logo
após declarar combate a essa estrutura subterrânea, Kennedy estava morto.
Dá para contar, dá para
explicar à população em geral, ao povão em particular?
Penso que sim; mas,
lembrando Churchill, custa sangue, suor e lágrimas, todos os dias. E
ainda tempo, muito tempo. E, se continuarmos a permitir que "eles"
dominem a narrativa, não acontecerá nunca, com “legislativo, com STF, com
tudo". Eles conseguirão "manter isso aí, viu?".
Como Sísifo, veremos
sempre a pedra rolar morro abaixo, não importa quão próximo o topo se
apresente em nossa caminhada e fantasia.
PS1: posso ter me
equivocado em um ou outro dado e mesmo na grafia de alguns nomes. Mas no
essencial é isso que vejo. Bjs
PS2: acrescentei dois
links do Youtube que remetem aos discursos dos ex-presidentes americanos
- Eisenhower, alertando
sobre o complexo industrial-militar que se erguia
- Kennedy, declarando
combate ao “estado profundo”
https://www.youtube.com/watch?v=5RkcD2so6ZI
https://www.youtube.com/watch?v=Ec-7D-JyeMc
PS3: e ainda um link para
artigo de Pepe Escobar, que se especializou em Ásia, sobre Rota da Seda e
América Latina
http://blogdoalok.blogspot.com/2018/02/novas-rotas-da-seda-da-china-chegam.html
(continua) |