Antes de retomar
o que vinha sendo o curso normal destas reflexões na série O Brasil e a
hora da verdade, ou seja, a revisita a nossa história, nossa formação, o
nosso reconhecimento, farei um último comentário a respeito das eleições de
2018, pois é incerto e mesmo improvável que a partir de 1º de janeiro os
brasileiros possamos livremente nos manifestar sobre nossa realidade.
O que pensar
sobre a atual situação brasileira? Ela deriva de um fato fortuito, um
imprevisto como o asteróide que mudou a vida na Terra há 65 milhões de anos,
eliminando a maioria das espécies viventes, entre as mais conhecidas os
dinossauros? Ou seria esta nossa condição não apenas uma casual sucessão de
fatos desconexos, mas sim o resultado de processos com raízes mais profundas
em nossa história?
Posso vir a
verificar o tipo de respostas esperadas a estas indagações, mas me inclino a
supor que a maioria estaria no campo da segunda opção. Por parte dos que
respondem, seria uma aplicação do tal “senso comum”, que reconheço oposta às
atitudes reais e gestos cotidianos dos mesmos respondentes, numa clara
contradição entre sua percepção idealizada e as práticas concretas.
Senão vejamos
alguns fatos, apurados por um breve histórico de pesquisas, eleições,
plebiscitos e referendos em nossa história recente.
De início,
iluminemos a diferença entre plebiscito e referendo. O termo plebiscito
tem origem no latim “plebiscítum” ou “plebiscítus”, formado
por “plebi” (“plebe, a classe do povo”) e “scitum”
(“decreto”); segundo o dicionário Houaiss, é uma “lei romana aprovada pelos
plebeus”. Já o termo referendo, do latim “referendum”,
significa “aquilo que deve ser sujeito ou submetido a alguém”.
Na prática, ambos
têm relação com um ato legislativo para ordenamento do estado-nação, o que
afetará toda a vida do país. O plebiscito constitui consulta prévia à
população para dar ou não origem a um ato legislativo dela decorrente.
Tivemos o último em abril de 1993, para decidir a forma e o sistema de
governo que regularia a vida brasileira, quando então mais uma vez nos
resolvemos pela república e pelo presidencialismo. Já o referendo é
convocado após a aprovação de um projeto de lei pelo Congresso, para que a
população o aceite como válido ou o rejeite. Nosso último referendo, em
outubro de 2005, tratou do Estatuto do Desarmamento de 2003, sobre seu
artigo 35 que proibia o comércio de armas de fogo, quando este foi rejeitado
e se decidiu que a prática poderia continuar.
Em janeiro de
1963 tivemos um referendo a respeito do sistema de governo: presidencialismo
(em que o presidente é o chefe do governo) ou parlamentarismo (em que o
Congresso elege o chefe do governo)? Ele procurava resolver um impasse
político. Com a renúncia de Jânio em agosto de 1961, o vice (que à época
era eleito por votação popular) João Goulart foi impedido de assumir a
presidência por um grupo de militares do Alto Comando, que só cedeu após
intensa negociação política: o III Exército, estratégico, baseado no RS e
comandado pelo Gen. José Machado Lopes, se opôs à quebra da legalidade, bem
como outros oficiais generais pelo país, como Peri Bevilaqua, Oromar Osório
e o tenente-coronel Joaquim Baptista Cardoso, que, nacionalistas e
desenvolvimentistas, passaram a ser conhecidos como ”generais do povo”. A
Rede da Legalidade, liderada por Leonel Brizola, governador do RS, mobilizou
muitos brasileiros, entre eles o governador Mauro Borges, de Goiás, e os
Comitês de Resistência. O Congresso, alegando “evitar-se uma guerra civil”
e à revelia da população (que, comparada a hoje, parecia mais bem
informada), impôs o sistema parlamentarista, com Tancredo Neves à frente das
negociações. Parte do acordo, um plebiscito seria convocado em 1965, ao
final do mandato de Jango. Instabilidade e falta de governabilidade assim
anunciadas, pouco depois de receber a faixa presidencial em 7 de setembro,
graças à resistência civil e militar, Jango conseguiu aprovar a antecipação
do plebiscito para janeiro de 1963. Os resultados de então não deixaram
dúvidas: cerca de 77% dos votantes rejeitavam o parlamentarismo como sistema
de governo, com 17% o aprovando e os restantes 6% distribuídos entre brancos
e nulos. Um fato, porém, causava profunda preocupação: 38% do eleitorado se
abstivera da votação, o que somado aos votos em branco e nulos atingira um
patamar acima de 41% de desinteressados em seu próprio destino!
Daí então, com
pouco mais de um ano de governo sabotado por todos os meios, João Goulart
era deposto em 1º de abril de 1964 por novo golpe civil-militar deflagrado a
partir de MG pelo Gen. Mourão, pleno de traições e subornos (sabe-se hoje
que o Gen. Amaury Kruel, então comandante do II Exército, com sede em SP,
recebera seis malas com US$ 1,2 milhão, sacados de um banco americano, pelas
mãos do presidente da FIESP), golpe de estado que instaurou a longa e
tenebrosa noite de 25 anos de ditadura, com milhares de perseguidos,
caçados, presos e torturados entre civis e militares, assassinados,
desaparecidos, exilados, sindicatos e reuniões proibidas, censura absoluta,
fechamento do Congresso, cancelamento de eleições, endividamento crescente
do país, desemprego, demolição da educação e conquistas sociais etc, feridas
profundas e ainda não cicatrizadas.
Como nos lembra o
jornalista Luiz Cláudio Cunha, “só um cínico poderia reclamar que a
ditadura de 1964 fosse chamada de ‘governo militar’... Um governo militar
que produziu 500 mil cidadãos investigados; 200 mil detidos por subversão;
50 mil presos nos primeiros cinco meses do golpe; 11 mil acusados em
Auditorias Militares, 5 mil deles condenados; 10 mil torturados só no
DOI-Codi do coronel Ustra, o literato favorito do capitão-presidente; outros
10 mil torturados Brasil afora; 10 mil brasileiros exilados; mais de 4.800
mandatos cassados, de vereador a presidente; 1.200 sindicatos sob
intervenção; expurgo de funcionários públicos e militares; 3 ministros do
Supremo afastados compulsoriamente; Congresso Nacional fechado 3 vezes; 7
assembleias estaduais em recesso; censura à imprensa, ao teatro, ao cinema,
às artes; quase 200 mortos, mais de 200 desaparecidos...”, tudo, como
sempre, em nome do combate à corrupção, ao comunismo, à inflação, à
desordem, à influência estrangeira.
As reformas de
base defendidas por Jango para o desenvolvimento do país (minorar a
desigualdade social, regulamentação do capital estrangeiro e da remessa de
lucros, reformas política, bancária, fiscal, agrária, urbana, universitária,
voto aos analfabetos e militares de patente subalterna etc), ainda que
capitalistas aggiornadas (atualizadas), já que Goulart nada tinha de
socialista e menos ainda comunista, foram desta forma violentamente
abortadas.
Após a
Constituinte de 1988, que deu origem à atual Constituição Cidadã
(esta ora já bastante mutilada pela sucessão de ataques desde então) e que
formalmente encerra esse período ditatorial, é convocado em 1993 o previsto
plebiscito sobre modos de governo. Em abril, a população votaria para
decidir sobre forma de governo (república ou monarquia) e sistema
de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). Ainda desta vez os
resultados são nítidos: pouco mais de 66% escolhem a república como forma de
governo, contra 10% que querem a monarquia, havendo 10% de votos em branco e
13% nulos. E novamente a abstenção assombra: 26% que, somados aos votos em
branco e nulos, vai ao patamar de 43% de desinteressados. Quanto ao sistema
de governo, vence o presidencialismo com 56% contra 25% pelo
parlamentarismo, com 5% de votos em branco e 15% nulos. A abstenção de 26%
somada a estes, eleva ao patamar de 40% o contingente de desinteressados.
Já neste século
21, em outubro de 2005, fomos os brasileiros convocados a um novo referendo,
agora sobre parte do recém-aprovado Estatuto do Desarmamento, de
2003, que buscava minimizar a violência crescente. Nele deveriam os
votantes decidir pela manutenção ou não do artigo 35 do Estatuto, que
proibia a comercialização de armas de fogo.
Apesar do amplo
debate, que foi obrigatório por dois meses, mas sob o lobby intenso e
farto financiamento dos fabricantes de armas (que apoiaram fortemente o
presidente |
eleito neste 2018), venceu a campanha pela manutenção da venda
das armas, com 64% dos votos (o poder desse lobby pode ser medido
pelo fato de que todas as pesquisas, a dois meses do referendo, apontavam
ampla vitória da proibição) e ainda 1,4% de votos em branco e 1,7% nulos
que, somados à abstenção de 22%, mostrou um patamar de 25% de
desinteressados.
Que pensar a
respeito de uma população de que, em setembro de 1989, véspera da primeira
eleição presidencial após 25 anos de ditadura, apenas 43% davam apoio à
democracia (18% à ditadura e 22% dizendo-se indiferentes, Datafolha), apoio
que ainda cairia para 39% (Ibope) em 2000?
Como entender
que, décadas depois, em outubro de 2018, na maior crise de nossa história,
69% prefiram a democracia (Datafolha), contra 12% que defendem a ditadura,
13% sejam indiferentes e 5% não tenham opinião formada? É com um fio de
esperança que também aí se constata o maior apoio à democracia justamente
entre os jovens (16 a 24 anos), com 74%.
Seria por acaso
que 77% dos eleitores de Haddad prefiram a democracia, contra 6% para a
ditadura, enquanto que entre os eleitores de Bolsonaro esse apoio cai para
64% a favor da democracia contra 22% de apoiadores da ditadura?
Surpreendente é que o maior índice de apoio à democracia esteja entre os
eleitores de Ciro Gomes, com 81%, quando já o índice de indiferentes é igual
para todos eles, 11%.
Que pensar quando
o mesmo levantamento mostra que 51% dos brasileiros guardam más lembranças
da ditadura e que 32% as têm como positivas?
Nele ainda, 80%
condenam a tortura (com 17% a favor), 72% condenam a censura às rádios, tvs,
jornais (23% a favor), 72% condenam a proibição às greves (24% a favor), 71%
condenam o fechamento do Congresso (21% a favor), 70% condenam as
privatizações (20% a favor), 65% condenam a prisão sem o devido processo
legal pela Justiça (32% a favor), 57% aprovam a universidade gratuita e 50%
temem as chances de o Brasil voltar à ditadura?
Como compreender,
diante disso, que a maioria dos eleitores (verdade que apenas maioria
simples – maior votação – e não maioria absoluta – mais da metade dos votos)
se disponha a entregar seus destinos, e o de todos, ao candidato que
contraria exatamente a todas suas preferências manifestas, já que
Bolsonaro explícita e ilegalmente defende com fervor a ditadura, a tortura,
o fechamento do Congresso e do STF (“bastaria um cabo e um soldado”),
a censura, o assassinato, o banimento ou a prisão dos adversários políticos,
a entrega do patrimônio nacional, o saque e a completa submissão do Brasil à
tutela e aos interesses dos EUA e do capital privado?
Dentre as mais
estapafúrdias das tantas desculpas ouvidas desta gente, fruto de tolice ou
da má-fé, desponta uma que reza que “se não der certo, a gente vai lá e
muda...”.
Como perguntar
não ofende, cabe indagar: “a gente” quem, cara pálida?! “Vai lá”, aonde?!
Como e quando?! O que entendem ou esperam por “dar certo”? Pois se votaram
no medo, de onde virá a coragem? Acreditam mesmo que os demônios enfim
libertos da Caixa de Pandora voltarão docilmente ao limbo assim que vocês o
solicitarem?
O presidente que
governará o destino próximo dos brasileiros (segundo Geisel, “um mau
militar”; segundo o DIAP, um péssimo parlamentar) tem montado sua
“equipe” com base no que há de mais medíocre, incapaz, pusilânime,
antinacional e entreguista, logo, corrupto, dentre nós, todos escolhidos
para o caos como método de dominação. Eleito há um mês, embora pareça já
uma eternidade, e a pouco mais de 30 dias de sua posse, o governo eleito
nasce ética e moralmente morto. Nem poderia ser diferente, para uma
candidatura que “venceu” baseada na mentira, no conluio, no golpe, na
corrupção do famigerado “caixa 2” e na sórdida manipulação das mais rasas
pulsões emotivas a espargir ódio, violência, preconceito. Fragilíssimo
politicamente, recorrerá à força e arrastará o Brasil à sepultura, caso não
despertem da insanidade cometida os que o escolheram. Irascível, ignorante
e fundamentalista, é provável que se torne descartável, como Collor em 1992,
assim que começar a “atrapalhar os negócios”.
É prudente
lembrar que, num universo de mais de 147 milhões, que afinal representam a
população de 207 milhões de brasileiros, Bolsonaro foi eleito com pouco
menos de 58 milhões de votos, 10 milhões a mais que Haddad. Ambos
representam projetos opostos e cerca de 90 a 100 milhões de eleitores não
lhes deram o voto.
A prudência
recomenda ler este processo mais profundamente no tempo e ver, por exemplo,
que, plantada desde 2013 (quando uma clara e insuspeita insatisfação popular
não foi logo compreendida pelos progressistas e acabou capturada e
anabolizada pelas forças do golpe de 2016), esta eleição de 2018 constituiu
um plebiscito sobre rejeições (e com 29% de indiferentes!) enquanto que o
único que poderia superá-las, como já o havia feito uma vez, ora mofa,
prisioneiro político, numa prisão injusta. Fraude processual a sustentar
fraude eleitoral, tudo, como sempre, em nome do combate à corrupção, ao
comunismo, à inflação, à desordem, à influência estrangeira...
É bom lembrar
ainda que o eleitorado, por si, nada cria: apenas escolhe dentre o que é
oferecido e, ainda que por tempo limitado, lhe dá impulso (60% rejeitam o
Congresso eleito com seus próprios votos!). Aí reside basicamente a
fragilidade da aposta política exclusiva na via eleitoral. Quem cria são as
forças vivas, os que estudam, pesquisam, diagnosticam, refletem, debatem,
militam, propõem, articulam, organizam, se expõem, enfim, enfrentam.
O maior problema
e perigo para os humanos não reside no que desconhecemos: ele emana do que
não queremos saber.
(Fontes: TSE,
FGV, Senado, Datafolha, Ibope, DIAP)
(continua) |